“Nós, cristãos, não somos educados para ler a realidade. Só para os sacramentos. Por isso, as igrejas estão vazias”

Aos 80 anos, o P. Domingos Monteiro da Costa, jesuíta há 63, celebrou 50 anos de sacerdócio. Pároco da Mexilhoeira Grande, no Algarve, há 47 anos, aí desenvolve um forte e intenso trabalho pastoral e social.

Aos 80 anos, o P. Domingos Monteiro da Costa, jesuíta há 63, celebrou 50 anos de sacerdócio. Pároco da Mexilhoeira Grande, no Algarve, há 47 anos, aí desenvolve um forte e intenso trabalho pastoral e social.

Estamos na aldeia de São José de Alcalar, na Paróquia da Mexilhoeira Grande, no Algarve, com o P. Domingos Monteiro da Costa, sj, que celebrou no dia 30 de julho 50 anos de sacerdócio. Como é que olha para a sua vida e como se sente?

Olho com muita gratidão. Foi o Senhor que me meteu neste caminho e eu fui aceitando. É mais fácil olhar agora retrospetivamente para aquilo que o Senhor foi pedindo através deste seu servo inútil, como diria São Paulo, do que na altura que tinha o caminho aberto, sem saber para onde ia, nem onde ia dar.

E sente-se animado, com genica?

Com certeza. Costumo pensar que trabalho mais atualmente, embora doutra maneira, do que no início, pois quando vim para a Mexilhoeira Grande não havia nada para fazer. O próprio bispo quando me pediu para vir para cá deu-me a entender que era para entreter o povo e fazer o que este desejasse: enterros, batismos, casamentos. Se calhar, por isso, só me pediu para ficar dois meses. Quando fui entregar a paróquia ao fim desses dois meses, perguntou-me se estava desanimado e eu disse: “Não, pelo contrário”. “Então, continue.”

Dois meses que foram muitos anos…

Sim, 47 anos. Dos meus 50 anos de padre, 47 foram dedicados a essa paróquia.

Recuando um pouco… o P. Domingos nasceu na freguesia de São Bartolomeu do Rego, concelho de Celorico de Basto, numa família humilde. Como descreveria a sua família, as suas origens e os primeiros anos de vida?

O meu pai foi imigrante, eu tinha 7 anos quando ele foi para Aveiro, dele tenho poucas recordações pois vinha raríssimas vezes a casa. Fui para o seminário com 13 anos. Enfim, não ajudou nada, pois não tínhamos muitas visitas. Tinha três irmãs, era o único rapaz, e connosco vivia também a minha avó paterna que ficou viúva muito cedo, e a minha mãe. Eram as duas analfabetas. A minha mãe muito revoltada, pois na família dela eram muitos irmãos e só os rapazes foram para a escola. De revolta e protesto – também eu na vida agi muito por protesto – disse que havia de mandar os filhos todos à escola. E mandou, numa altura em que a escola primária não era obrigatória.

Nem as mulheres iam à escola…

Sim. Também não havia muitas professoras, eram regentes. Era uma sala com 120 crianças, das quatro classes, pelo que quem ia para a primeira classe passava dois ou três anos, pois o interesse era levar as pessoas a exame na quarta classe.

O P. Domingos lançou recentemente um livro sobre a história da sua vida e missão. Uma das brincadeiras que refere em criança era fingir de padre, a imitar o senhor abade da sua paróquia. Era uma brincadeira comum a todas as crianças ou já um indício do que estava para vir?

Era uma brincadeira que as crianças do meu lugar faziam. Éramos uma família muito cristã, onde a minha avó ia todos os dias à missa e obrigava-me a ir também, às sete horas da manhã. Não havia as brincadeiras que há hoje, para jogarmos à bola era com uns trapos cosidos. Sabia lá eu o que era o futebol… Jogava à macaca com as minhas irmãs porque era o único rapaz. Mas como rapaz, achava que também devia promover algumas brincadeiras e lembrei-me de brincar à padre, usando roupas da minha mãe: fazia sermões e cortava a broa em rodelinhas para dar a comunhão. Mais tarde, quando comecei a saber ler, na terceira classe, como a minha mãe era costureira, vinham pessoas fazer provas de roupa lá a casa. Aos domingos à tarde eu lia uns livrinhos que havia sobre a vida dos santos (não havia sagrada escritura, na altura) ou as aparições de Fátima. Quando descobri que Nossa Senhora tinha aparecido aos pastorinhos, eu que também ia com uma ovelha, uma cabra e uma vaca para o monte, pensei: porque não brincar também aos Pastorinhos de Fátima? Éramos três, duas raparigas e um rapaz, éramos pastores, havia uma capela no sítio para onde íamos com o gado…

Mas como rapaz, achava que também devia promover algumas brincadeiras e lembrei-me de brincar à padre, usando roupas da minha mãe: fazia sermões e cortava a broa em rodelinhas para dar a comunhão.

Identificava-se com os Pastorinhos?

Sim, eu fazia de Francisco, a minha irmã mais nova, que foi para freira, fazia de Lúcia e a mais nova de Jacinta. Exigia à minha mãe que elas fossem comigo para sermos os três e íamos rezar o terço para a porta da capela do Viso e deixávamos a bicharia pastar longe. Uma altura, a minha irmã Rosinda disse que não podíamos ir para o campo de milho, que não era nosso, porque a bicharia podia comer o milho. Eu disse: “Ó Rosinda, se Nossa Senhora pode aparecer aos pastorinhos, também pode guardar os bichos, vamos mas é rezar o terço!” Quando acabamos, os bichos tinham saltado para o campo de milho e andavam com umas barrigas enormes. A minha irmã disse: “Eu não te dizia?” E eu respondi: “Já que Nossa Senhora não guardou os animais, a partir de hoje não nos apanha mais a rezar o terço à porta da capela”. Fizemos greve. Zanguei-me com Nossa Senhora, mas ela, pelos vistos, não se zangou connosco.

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Domingos na Escola Apostólica de Macieira de Cambra e mais tarde no Colégio São João de Brito, em Lisboa, onde fez o Magistério.

A sua entrada para o seminário deu-se pela mão de um amigo lá da terra, o António, que estava a estudar e quando veio a casa lhe falou disso. Que idade tinha?

Tinha 12 anos, andava na quarta classe e era acólito. Havia vários seminaristas no seminário de Braga que eram os filhos dos lavradores, pois naquela altura não havia outra possibilidade de estudar senão no internato. Para os rapazes, era o seminário, não que quisessem ser padres. Quando eles vinham de férias, eu era marginalizado e deixava de ser acólito pois eles é que acolitavam. Mas eu não deixava de ir à missa. Um dia, tinha 10 anos, houve confesso e fui-me confessar a um padre da freguesia vizinha. Ele perguntou-me o que queria ser quando fosse grande e ficou muito contente: “Ah, muito bem, queres ser padre”. E eu respondi: “Mas eu não quero ser padre como você nem como o sr. Abade da minha terra!”. E ele respondeu: “Mas tu queres ser padre e não queres ser como nós?” E eu perguntei: “Mas não há padres diferentes?” E ele: “Não, se queres ser padre tens de ser como nós”. E eu respondi: “Então, não quero!”. Quando cheguei aos 12 anos, conheci esse rapaz com quem tinha brincado, o António do Dias, os pais dele eram os que nos lavravam os campos e nós íamos trabalhar para a família deles. Ele andava noutro seminário, mas que eu não sabia qual. Era muito devoto e quando vinha de férias convidava-me para ir à igreja com ele. Para além da missa de manhã, ia à igreja de manhã e à tarde, e convidava-me para ir rezar com ele, coisa que os outros seminaristas não faziam. Eu disse: “Não me arranjas para eu ir para o teu seminário?” Ele disse que sim, que ia falar com o reitor, e depois veio o inquérito e o formulário para preencher. Mas a minha mãe não sabia ler, foi através do padre da minha terra que o preenchi. Vinha lá a pergunta se eu sofria de alguma doença e a minha mãe, como era sincera, disse que eu tinha dores de barriga. A resposta parece que foi a seguinte – parece, pois eu nunca a li – os jesuítas queriam padres saudáveis e eu não podia entrar.

Foi a primeira deceção…

Sim, foi uma deceção enorme e passei um ano em casa. Havia alguns lavradores que me queriam para criado, e eu continuei como acólito na missa de todos dias. Na altura, providencialmente, a minha irmã foi trabalhar para o hospital de Felgueiras. Em dois meses, eu e a minha mãe só lhe fizemos uma visita, fomos a pé, três horas para cá, três horas para lá… E quem nos havia de receber? O capelão. Fez-me a mesma pergunta: “O que queres ser quando fores grande?” E eu respondi: “Quero ser padre, mas já não posso”. E ele: “Porquê?” Contei-lhe a história e ele disse: “Podes ir para padre, sim, as doenças curam-se”. A minha mãe explicou que dera aquela resposta porque mentir era pecado e conduzia ao inferno. E ele disse: “Vai para o inferno, o quê? Essa resposta impediu o seu filho de ir para o seminário!”. Saí dali numa correria louca para chegar a casa para escrever a carta. No outro dia fui ter com a professora da quarta classe, fomos a ditado, e eu, que não tinha livro nem caderno, tive 17 erros. Eu que habitualmente nunca tinha erros!! E disse: “Senhora Professora, amanhã vou dar zero erros”. E assim foi. Depois veio a resposta de Macieira de Cambra, do Sr. P. Abel Guerra, que foi a pessoa que mais me marcou, que dizia que passaria pela minha terra em agosto de 1953 para me examinar. Quando me examinou ainda procurei levar mais uns miúdos comigo, mas quando ele punha as perguntas, quem não sabia responder, não respondia, e eu levantava sempre o dedo. Respondi a tudo e ele disse: “Vais para o seminário!”. E eu disse: “Sr. Padre, venha ver a nossa casa, a nossa pobreza, os meus pais não podem pagar nada…” E ele: “Nem eu nem Deus queremos o teu dinheiro, eu próprio te arranjarei uma madrinha para te custear os estudos”. Abriu-se o céu diante de mim…

Ele perguntou-me o que queria ser quando fosse grande e ficou muito contente: “Ah, muito bem, queres ser padre”. E eu respondi: “Mas eu não quero ser padre como você nem como o sr. Abade da minha terra!”. E ele respondeu: “Mas tu queres ser padre e não queres ser como nós?” E eu perguntei: “Mas não há padres diferentes?” E ele: “Não, se queres ser padre tens de ser como nós”. E eu respondi: “Então, não quero!

Mas depois não conseguiu entrar à primeira…

Não. Perguntou-me para onde eu queria ir porque havia a Escola Apostólica (de Macieira de Cambra) e a secção de Soutelo (Vila Verde, Braga) que ficava perto da minha terra. Na de Macieira de Cambra, distrito de Aveiro, estava o António do Dias, e eu disse que queria ir para aí, mas ele disse que em Soutelo ficava mais perto de casa, e quem não tinha dinheiro não ia a férias. Deve ter ficado convencido de que era isso o combinado e mandou-me para Soutelo. A 30 de setembro de 1953 a minha mãe leva-me a Soutelo e batemos com o nariz na porta. O irmão coadjutor recebeu-me com toda a alegria, despejou-me o saco da roupa, foi-me fazer a cama enquanto esperava pois o P. Reitor estava a almoçar. Quando este chegou com uma lista, perguntou: “Como é que o menino se chama? Não está na lista. E o número de roupa? Não está na lista. Quem é que o mandou para aqui? E onde está a carta do Sr. Abade?” Ele ficou com ela, respondi. “Então tem que ir embora”. O irmão ainda disse que já me tinha feito a cama. E ele: “Desfaça-a”. Ainda pediu para eu ficar uns dias e depois ir para lá, mas ele não deixou. Voltei outra vez para casa, fui falar com o Sr. Abade que me mostrou outra vez a carta, escreveu outra, e tive de esperar até meados de outubro. Voltei a encontrar esse padre na Filosofia, hei-de lembrar-me sempre dele. Via-o e pensava: foi este sujeito que me fez voltar para casa! Mas nunca lhe contei a história e ele nunca me reconheceu.

Mas o importante é que conseguiu chegar ao destino.

Sim, depois tive umas aulas extraordinárias, o meu conterrâneo deu-me umas explicações de latim e de matemática. Quando vieram as primeiras notas, fui o único do primeiro ano que fui ao quadro de honra.

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Na Aldeia de São José de Alcalar, na Mexilhoeira, os idosos vivem em 52 casas que formam bairros à volta de um jardim.

E nessa altura já tinha alguma ideia do que era a Companhia de Jesus e ser jesuíta?

Nada. Eu queria era ser um seminarista diferente, manter-me pobre. Até pelo exemplo contrário que tinha: o Sr. Abade convidava os seminaristas para o pequeno almoço a seguir à missa e eu, que era acólico, nunca me convidou para nada. Incomodava-me também que quando dava a comunhão aos pobres, à minha família, irmãs, e avó, partia a hóstia e dava metade a cada um. Aos senhores lavradores dava a hóstia inteira. Eu cá para mim: “Não, eu quero ser um padre diferente, quando for padre farei exatamente o contrário”. Mas devo dizer que nunca parti a hóstia em metades.

Foi jesuíta mais ou menos por acaso?

Sim, sim. Quer dizer, para Deus não há acasos… Deus pôs-me no caminho as condições necessárias e suficientes e limites. Agora, a posteriori, depois de ter feito o caminho, é que me admiro como Deus combina tão bem as coisas. Isto são os milagres do dia a dia. Para mim, os milagres não são as grandes curas, são o dia a dia. Sem a gente prever nem combinar nada, acaba por chegar onde queria, muitas vezes por caminhos extraviados. Lá diz o povo: Deus não dorme; Deus escreve direito por linhas tortas; Deus sabe tirar o bem até do mal. Foi o que aconteceu comigo. O que parecia mal e liquidado volta a ser possível. Isto é que é o maravilhoso.

Quer dizer, para Deus não há acasos… Deus pôs-me no caminho as condições necessárias e suficientes e limites. Agora, à posteriori, depois de ter feito o caminho, é que me admiro como Deus combina tão bem as coisas. Isto são os milagres do dia a dia.

E isso aconteceu-lhe várias vezes na vida.

Muitas vezes! Há dias numa conversa com o diretor do jornal Folha do Domingo, da diocese do Algarve, ele admirava-se: “Como é que você consegue ler através do negativo para passar ao positivo?”. E eu respondi: “Isso é próprio dos profetas, pois os do Antigo Testamento conseguiam ler a realidade a partir de Deus, exatamente em circunstâncias de vazio total de Deus”. Se os cristãos não conseguem descobrir a ausência de Deus… porque Deus também se manifesta, creio eu, através da sua ausência. Hoje queixamo-nos de que o mundo está sem Deus, sem valores… Eu dou-me muito bem com o mundo pois posso dizer, como Jesus Cristo, “venci o mundo”. O meu pequeno mundo da Mexilhoeira Grande, claro. No princípio, fizeram-me as guerras todas para eu me ir embora.

Queria voltar ao tempo do Noviciado. Para o P. Domingos havia regras que não faziam sentido, certo?

Na Escola Apostólica não, aí foi a melhor parte da minha formação. Éramos adolescentes e éramos tratados como adultos. Mais tarde, quando chegámos ao Noviciado e Juniorado, foi uma volta de 180 graus. Havia coisas que não dava para compreender. Eu tive de aguentar, claro…

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P. Domingos veio para o Algarve por pouco tempo mas acabou por ficar. Está há 47 anos na Paróquia da Mexilhoeira Grande.

Já dava trabalho aos seus superiores?

Ai pois dava, com certeza. Era tímido, mas sofria, sabia que eram questões transitórias e estava sempre a sonhar com a fase que vinha a seguir, pois queria era avançar e chegar depressa a padre. Até por duas vezes procurei apressar ser padre, no Magistério queria ter só dois anos e tive três; na Filosofia fiz os exames em quatro anos em vez de três, para vir para Portugal mais cedo, mas o P. Fragata disse-me que não. Em Paris fiz os exames de três em dois anos, aí não consultei ninguém e se consultasse não tinha vindo.

Mas essas regras da altura que hoje, olhando para trás, não nos fazem sentido, como conversarem em latim…para o P. Domingos isso na altura já não fazia sentido…

Sim. Ou como levar o chapéu preto, à padre. Uma vez um colega meu deixou-o levar pelo vento e claro que foi “dizer a culpa”, que era ajoelhar-se no refeitório, durante a refeição, diante dos padres todos e dizer: “Reverendos padres e irmãos, em obediência à autoridade venho dizer a minha culpa…”

Foi nessa altura que começou o seu trabalho apostólico, a dar aulas de religião e moral, catequese e a visitar os presos?

Sim, o que me moveu sempre para ser padre era a ação pastoral direta, pregar, ensinar, celebrar missas, dar a comunhão. Cheguei a sonhar, ainda não andava sequer no seminário, que tinha a igreja cheia e andava a dar a comunhão às crianças.

Mas a vida no seminário não era voltada para a comunidade…

Não, isso foi o que me custou mais. Estive cinco anos em Macieira de Cambra e nunca fomos a uma missa na paróquia, em Soutelo a mesma coisa. Diziam-nos que era preciso sentir com a Igreja, Santo Inácio também dizia isso. Mas a Igreja, o Papa, estava lá longe, em Roma. Para mim, a Igreja sempre foi algo de próximo, era a paróquia. Por isso é que procurei sempre ligar-me e, quando havia possibilidade, dar aulas, catequese, visitar os presos.

O que me moveu sempre para ser padre era a ação pastoral direta, pregar, ensinar, celebrar missas, dar a comunhão.

Apesar de ter esse gosto pelo trabalho pastoral direto, também tinha uma grande paixão pela Filosofia. O sonho da Companhia para si era ser professor?

Bem, não fui bem eu que quis ser professor de Filosofia, foi o P. Júlio Fragata que viu em mim essa possibilidade. Aconselhou-nos a estudar alemão e deu-nos um curso, pois dizia que quem se dedicasse à filosofia tinha de saber alemão pois muitos dos livros dos filósofos da altura eram em alemão. Aconselhou-me a pedir uma bolsa de estudos à Embaixada alemã em Lisboa e consegui ir fazer um curso na Vestefália em 1968, que me abriu caminho para estudar Filosofia na Alemanha, que era a minha paixão.

Veio fazer o Magistério a Lisboa. Nunca cá tinha vindo, certo?

Nunca.

Não foram tempos fáceis, pois não?

Não, a minha irmã Teresa tinha adoecido. No dia 11 de junho em 1966, fez o exame de professora primária, a pedido meu junto de um conhecido. Disse-lhe que ela tinha uma doença gravíssima que duraria, quanto muito, um mês e se podia realizar o sonho de ser professora antes de morrer. Autorizaram. Fez o exame e no dia seguinte deu entrada no hospital condenada a um mês de vida. Acabou por viver um ano. Isso deu-me cabo da vida, entrei em muitas tentações do espírito mau: “Então, a tua irmã que podia fazer tanto bem às pessoas? E tu vais para padre numa igreja destas? Onde está Deus?” Fui ter com o meu orientador espiritual, o P. Agostinho Ferraz, que foi uma das pessoas que mais me marcou, muito humano, e ele só me fez duas perguntas que me iluminaram: “Sabes lá tu, Domingos, se não precisas da tua irmã Teresa mais no céu do que na terra para seres um bom padre? Sabes lá tu, Domingos, se a tua irmã continuasse viva seria tão feliz como se for para o céu? Deixa isso com Deus”. Aquilo reconfortou-me. Mas foi um momento muito duro. Como tínhamos brincado aos pastorinhos de Fátima e havia a causa de beatificação da Jacinta, lancei em Braga uma campanha de oração e pus aquelas crianças, 2500, de todas as escolas, a rezar pela minha irmã. Viveu ainda um ano, mas num martírio terrível. Escrevi no ano passado um livro sobre a minha família “Os Santos da nossa casa”, com testemunhos das pessoas, e as cartas dela em que contava a sua doença durante um ano…chorei muitas vezes. Tinha 21 anos. Ainda hoje é tomada como santa lá na sepultura dela. Enviei o livro que escrevi ao Papa que me respondeu, através de um bispo, uma coisa muito bonita. Apesar o livro ter sido enviado no dia 28 de maio de 2021, ele respondeu com data da sua morte e referiu o dia 5 como o dia da ida da Teresa para o céu. Quando recebi aquela carta disse: aqui está o dedo de Deus.

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Missa nova do P. Domingos, em 1972, com o Provincial P. Júlio Fragata e o P. Sílvio Moreira

No magistério viveu tempos difíceis, mas que moldaram a sua maneira de ser. Como foi isso?

Foram tempos maus. Mas devo dizer que foram as dificuldades da vida que me amadureceram e ajudaram a ser a pessoa que sou. A primeira foi a pobreza na infância, depois as dificuldades do tempo da formação. No Magistério houve um jesuíta que foi convidado para fazer uns testes aos escolásticos e houve um colega meu, do ano adiante, a quem, em conversa com o Provincial, este disse que tinha de sair da Companhia de Jesus porque não tinha craveira intelectual. Era meu amigo, tinha dois tios irmãos na Companhia, estava como jesuíta há 15 anos. Fiquei de tal maneira indignado que pensei: “Isto é o que me vai acontecer, é a história dos filhos de galinha preta e de galinha branca. São os pobres que são convidados a sair”. Quando me abeirei desse padre e disse-lhe que isto era para mandar pessoas fora da Companhia, ele ficou surpreendido. E eu disse-lhe: “Mas agradecia que me fizesse os testes”, pois precisava que ele me pusesse preto no branco. Estava com um medo terrível que me pusessem fora, já tinha sido ameaçado disso na faculdade de Filosofia, quando me disseram para pensar na vocação, se não sabia obedecer. Disse-lhe: “Queria que me dissesse se eu tenho ou não craveira intelectual para ser jesuíta”. No final, ele disse: “Se você não tem, então não sei quem tem”. Agradeci e pensei: “a partir de agora, tenho como defender-me”.

Mas devo dizer que foram as dificuldades da vida que me amadureceram e ajudaram a ser a pessoa que sou. A primeira foi a pobreza na infância, depois as dificuldades do tempo da formação.

A morte da sua irmã foi um momento difícil da sua vida, mas a sua ordenação diaconal e sacerdotal também foi marcada pela morte da sua mãe.

Sim, fui ordenado diácono em 1972. A minha mãe vivia no Campo Grande, nas Irmãs Concecionistas ao Serviço dos pobres e vinha todos os domingos almoçar comigo ao colégio. Eu era o único suporte da minha mãe, o marido já tinha morrido. Quando pus a hipótese de ir para a Teologia na Alemanha –  queria sair daqui, fazer a teologia a sério, não queria ir para a Universidade Católica -, já era tarde. Mas quando tinha estado lá a fazer o curso de alemão, falei com o reitor e tinha a porta aberta. Disse ao P. Provincial: “Ele só está à espera de uma carta sua”. “Então, se é assim, eu escrevo”, respondeu. Tinha de convencer a minha mãe a autorizar-me a estudar no estrangeiro. Ela era uma pessoa que nos ensinou a todos a voar, era uma pessoa fantástica e não sabia ler e escrever, deu uma liberdade aos filhos… Disse-lhe: “Vai ficar triste porque não vai poder almoçar comigo ao sábado e domingo mas eu queria ser um padre diferente e gostaria de ir para o estrangeiro”. E ela disse: “Eu quero é que sejas um padre feliz, não te prendas a mim. Vai para onde tiveres de ir!” Que coisa espantosa…

Isso marcou-o muito?

Imenso. A minha maior tristeza foi que em 71 -, a última vez que estive com ela, no verão – fiz a viagem no dia 17, a minha irmã disse-me o estado dela e eu queria ficar junto dela. Teimou que ficava ela e a mãe morreu nessa noite. Tenho uma mágoa enorme de não ter estado com ela nessa última noite. Quando me ordenei padre, já ela tinha morrido.

Já não tinha praticamente família?

Não tinha ninguém. A minha missa nova, na minha terra, no Rego, foi sem família. Foi o povo da minha terra que se organizou para me preparar a missa. O almoço foi na família do jesuíta P. José Belarmino Araújo, que nos ofereceu o almoço.

O início da sua vida pastoral foi na Alemanha com algumas experiências na Dinamarca, na Suécia. Como foi?

Fui em 1973 passar o Natal com os imigrantes portugueses. Depois comecei a substituir um padre alemão na zona de Frankfurt. Em 1976 fui substituir outro pároco, mas não me agradou nada, só tinha missa ao domingo, mais nada que fazer à semana. No ano seguinte consegui ir para a paróquia de Langen, através de um colega meu português que estudou lá. Em 1977 pedi-lhe uma paróquia alemã, até para ter um bocado de férias fora da Mexilhoeira Grande, e havia um padre que estava à espera de substituto. Foi ouro sobre azul. A partir de 77, fui sempre substituir o pároco, todos os verões, até 2019, só a covid me fez interromper essa ligação. Mas agora a paróquia convidou-me para ir lá celebrar os meus 50 anos de padre.

Nessa altura, na Igreja já se começavam a falar das questões sociais, na sequência do Concílio, e já havia jesuítas nas paróquias. O P. Domingos já preferia o trabalho pastoral às aulas de filosofia e já tinha a ideia de se juntar a outros companheiros para essa missão. Como surgiu essa oportunidade?

Foi o P. Fragata que nos mandou para o Algarve. O P. Esteves esteve um ano em Portimão a fazer um estudo para a abertura de uma comunidade jesuíta no Algarve, mas chegou à conclusão de que o pároco de Portimão não queria lá religiosos. Fez um relatório a dizer que era impossível irmos para Portimão. Mas o bispo D. Florentino Andrade e Silva é que nos chamou para o Algarve. Quando viemos foi sempre na suposição de que viriam outros jesuítas.

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Jesuíta chegou ao Algarve no verão quente de 75, e esperou 40 anos até que fosse criada uma comunidade jesuíta na região.

Vieram só por dois meses, certo?

Não, nós viemos enviados pelo Provincial só para ver o terreno, não trouxemos tralha nenhuma e só nos deram dez contos para o começo. Já tínhamos um apartamento, sem nada, para nos instalarmos. O bispo como não conseguiu ninguém para a paróquia da Mexilhoeira Grande passou por lá e deixou-nos um bilhete debaixo da porta. Foi no dia 2 de outubro de 1975 e dizia o seguinte: “Se hoje passarem pelo apartamento antes das 15h apareçam na sacristia da paróquia da Mexilhoeira que eu estou lá numa reunião.” Vimos o bilhete, fomos ao encontro e aí se resolveu o nosso futuro.

Mas não sabiam ao que iam…

Nada. Quando chegámos à matriz (da Mexilhoeira Grande) estavam reunidos com o vigário e os párocos de Portimão à procura de um padre para a Mexilhoeira. Alguém deve ter dito ao bispo: “Estão aí esses dois padres sem fazer nada, é mandá-los para lá”. O P. Arsénio, que estava habituado às lutas, disse-me: “Vamos pedir cinco minutos para refletir. Eles querem correr connosco de Portimão. Vamos aceitar ficar aqui, mas com um padre de Portimão que assuma a responsabilidade”. Ficou o P. Matos por dois meses. Entretanto, o P. Matos afastou-se, o P. Arsénio também e o pobre Domingos ficou pároco da aldeia.

Mas nunca chegou a ser nomeado? Foi ficando..

Não, nunca fui nomeado pároco da Mexilhoeira. Fui ficando.

O que tinha acontecido ao pároco anterior? Estamos a falar do verão quente de 75…

Sim, o bispo disse-nos que o padre estava preso em prisão domiciliária e tinha de sair. Era claretiano. Quando chegámos à Mexilhoeira estava a rua cheia de gente contra a igreja, o padre fechado no primeiro andar, ainda o fomos visitar… O P. Arsénio, já habituado às lides da revolução, começou a falar com aquele povo todo. Eu mantive-me calado o tempo todo. Depois, contaram-me mais tarde que alguém comentou: “Se vem para cá o padre pequenito, nós damos conta dele, se vem para cá o calado, estamos lixados”.

E foi o calado que veio… como foram estes primeiros tempos, de grande conturbação política?

Foram tempos maravilhosos. Armaram-me tudo, cartas anónimas na sacristia, espalhadas de noite à população, foram três assaltos à igreja, acusarem-me de fazer política na igreja…

O P. Arsénio, já habituado às lides da revolução, começou a falar com aquele povo todo. Eu mantive-me calado o tempo todo. Depois, contaram-me mais tarde que alguém comentou: “Se vem para cá o padre pequenito, nós damos conta dele, se vem para cá o calado, estamos lixados”.

Foi a tribunal e tudo, certo?

Sim. Havia eleições em 76 e eu, quando passei pelo interior da paróquia, no fim das missas expliquei às pessoas que era preciso votar, porque se tratava de escolher pessoas da terra que conhecíamos. E expliquei os partidos, as pessoas e os símbolos, pois esta gente era toda analfabeta, quase ninguém sabia ler. “O PS sabem quem é o chefe, o Mário Soares; o PPD é o Sá Carneiro; o CDS é o Freitas do Amaral. E há um partido muito conhecido aqui na terra, que expulsou o padre e tudo, mas não está aqui, é o partido comunista. Qual é o símbolo? A foice e o martelo. Mas não está aqui na lista, não concorre. Mas há um partido, o PSJ, e eles estão aqui. Se não estão de cara lavada, em aberto, têm de estar aqui”. E uma senhora disse-me: “Mas nessa lista também há pessoas boas”. E eu disse: “Mas quem está a dizer o contrário? Se a senhora é da opinião que deve votar nessa lista, vote”. Constou que eu estava a dizer que o PCP estava escondido por detrás do PSJ. Levantou um escarcéu incrível. Fui chamado a tribunal, mandaram arranjar testemunhas. Mas não deu em nada.

Depois começou com a sua obra social. Era uma paróquia moribunda de uma pobreza humana, espiritual e material, como costuma dizer. Em que se concretizava isso?

Era uma paróquia abandonada, não contava socialmente. As pessoas tinham vergonha de dizer que eram da Mexilhoeira Grande por causa do escândalo de terem prendido e expulso o pároco. Ficaram com essa chaga. A paróquia tinha a fama de rebelde. Aqui no território houve muitos PIDE, vários foram presos. O pároco que cá esteve durante 25 anos vinha aqui fazer o serviço mínimo.

A comunidade cristã era inexistente?

Não havia catequese, jovens, casais, homens na igreja, havia 40 a 50 velhinhas, que rezavam o terço no meio da missa. Ninguém tinha Bíblia católica. As Testemunhas de Jeová cobriam este espaço todo com visitas, mas depois começaram a perder peso. Cheguei a dizer que era melhor ser bom Testemunha de Jeová do que mau católico. Para termos credibilidade temos que ser melhores do que os outros na oferta que fazemos. Mas não podemos fazê-lo condenando e perseguindo os outros. Este foi a mal da Igreja ao longo de tantos séculos, com as cruzadas, a Inquisição. Acabei na Mexilhoeira com as seitas também. Mas as pessoas não estavam despertas para isso, chegaram a dizer que eu estava a dar cabo da religião. Hoje quem se atreve a dizer isso?

Mas havia também pobreza material?

Sim, esta gente era pobre.

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Além da extensa obra social, P. Domingos dinamizou e responsabilizou os leigos de uma forma inovadora e profunda.

O P. Domingos começou a criar então obra social. Porque começou pelas crianças?

Era o Ano Mundial da Criança, em 1979, queria uma obra simbólica. As crianças ficavam na rua quando os pais iam trabalhar. Nasciam algumas 50 crianças por ano, pelo que se justificava a criação de um jardim de infância. Nem educadoras havia, tive de as ir buscar aos colégios particulares. O pároco anterior tinha deixado 153 contos, eu falei com o bispo, o terreno era da paróquia, tínhamos uma educadora que era irmã doroteia e construí lá o infantário. Fui propor à junta de freguesia fazermos em conjunto. Disse-me um jovem: “O dinheiro é da paróquia, o padre é paroquia, a freira é paróquia, quem é que vai mandar?” E eu disse: “Tive muito desgosto em conhecê-los. O 25 de Abril foi para nos darmos todos uns com os outros, para unir forças, mas vocês, ao fim e ao cabo, querem governar e mandar em mim e nas pessoas. Prefiro trabalhar sozinho”.

A gente só compreende o Evangelho quando as coisas acontecem e vi isso na minha família: a minha mãe que queira que eu fosse para o seminário, a nora contra a sogra, o meu pai contra mim… Vivia-se o Evangelho sem conhecer o Evangelho. Hoje a maioria das pessoas conhece o Evangelho, ou pode conhecê-lo, mas não se pratica. Verifiquei muitas vezes nesta luta dos primeiros anos da Mexilhoeira aquela passagem do Evangelho: “Quando tiverdes de vos defender, não penseis na vossa defesa pois o Espírito Santo vos porá na ponta da língua aquilo que haveis de dizer”.

Verifiquei muitas vezes nesta luta dos primeiros anos da Mexilhoeira aquela passagem do Evangelho: “Quando tiverdes de vos defender, não penseis na vossa defesa pois o Espírito Santo vos porá na ponta da língua aquilo que haveis de dizer”.

Mas também diz que foi esse investimento nas crianças que permitiu mudar a mentalidade, certo?

Sim. Quando o jardim de infância começou a funcionar, as coisas começaram a amainar, pois eles acusavam-me de não concluir nada. Quando estava a acabar uma obra, já estava a começar outra: foi o lar de idosos, depois a aldeia da Alcalar, a igreja da Figueira. As pessoas diziam: “Este padre é maluco!”. Felizmente, o Senhor deu-me tempo e os jesuítas também para eu continuar cá e pôr tudo a funcionar.

Hoje vê a paróquia diferente e mais dinâmica?

Sim, foi a igreja que pôs a paróquia no mapa da diocese, e que pôs a freguesia no mapa civil. A pobreza cultural era enorme, os alunos não completavam sequer o 9º. ano. Cheguei a dizer aos jovens: “Diziam-me no tempo da formação que eu não podia ler livros para não perder a vocação, vocês leiam isso tudo. Fortalecerão muito mais a vossa fé ao perceberem que a Igreja, depois de tantos disparates que fez, continua viva dois mil anos depois. Só mesmo por ser divina, senão não aguentava”. Não basta a credibilidade religiosa dos sacramentos, temos de ter credibilidade académica, social para falarmos de igual com o mundo.

O P. Domingos diz que era uma luta contra os poderes do céu, da terra e do inferno. Também já o ouvi dizer que era a “pastoral a murro”. Mas isso deu frutos?

Então não deu? Os poderes do céu eram as autoridades religiosas, por isso é que não consultei bispo nem Provincial para me meter nessas obras, diziam-me imediatamente que não era possível. É o pior que pode haver na Igreja: não deixar haver profetas. Não estou aqui a dizer que sou profeta… mas funciono muito com intuições e pedindo sinais a Deus. De acordo com o Antigo Testamento, as visões, os sonhos da noite. Quando me convenço de uma coisa, concluo “Isto vem de Deus”. Não vou consultar a carne e o sangue, os meus superiores vão dizer-me logo que não. Deus diz-nos para pensar no bem dos outros e quando fazemos isso teremos a hipótese de tudo correr bem. Foi a intuição que disse: “Não pergunto a mais ninguém, o caminho é certo.”

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P. Domingos e P. Arsénio Castro da Silva, amigos e companheiros de uma vida inteira.

Está a falar do tempo após a morte do P. Arsénio?

Depois disso, em 2013. Temos de funcionar por vezes, como cristãos, a partir do negativo, negativo para nós, mas que pode não ser negativo para Deus. Pedir sinais a Deus. Falamos mais de religião do que espiritualidade, e é do espírito de Deus que se trata. A religião é exterior a nós, são rituais. Não é a religião que nos leva a Jesus Cristo, é Jesus Cristo que nos leva aos sacramentos. Nós invertemos tudo.

Ainda hoje sente que a Igreja está marcada por isso?

Sinto. Está.

Temos de funcionar por vezes, como cristãos, a partir do negativo, negativo para nós, mas que pode não ser negativo para Deus. Pedir sinais a Deus. Falamos mais de religião do que espiritualidade, e é do espírito de Deus que se trata.

O Papa bem tem combatido o clericalismo…

Tal e qual. Eu tenho experiências do contrário, de gente que se converte. Às vezes a melhor forma de falar de Deus é não falar dele. Uma vez um alemão veio visitar isto (Aldeia de Alcalar) e ao fim de duas horas disse-me: “Na minha vida tive duas experiências em que as pessoas falaram de Deus sem nunca falar dele. Uma foi quando um padre franciscano foi à minha escola falar das missões. Outra foi hoje, você nunca me falou em Deus, mas esteve sempre a falar de Deus. Esta obra fala de Deus”. Costumo dizer que os lugares da Mexilhoeira que falam melhor de Deus não são a igreja nem a capela, são os lugares onde se pratica o amor. Pois Deus é amor.

Conte-nos um pouco sobre esta Aldeia de S. José de Alcalar, como surgiu esta ideia inovadora? Que leitura da realidade é que surgiu para responder a uma necessidade?

Tem a ver com isso mesmo, mas nós, cristãos, não somos educados para ler a realidade. Somos educados para fazer comunhões, para os sacramentos e depois vamos embora, por isso é que as igrejas estão vazias. As igrejas não estão vazias do mundo, daqueles que já cá não vinham, mas dos que estavam cá e abandonaram. Quando comecei o infantário, foi porque as crianças estavam na rua. Quando fazia funerais, ouvia as pessoas: “Enforcou-se”, ou “Foi ao canal e afogou-se”. O suicídio, diziam que era o destino, a vontade de Deus. E eu perguntava: “Um Deus que determina pessoas para se suicidarem?!” Comecei a ver que todos aos anos havia dois ou três suicídios de pessoas isoladas nos sítios do interior. E disse: “Tem de haver uma solução”. Adaptei a residência paroquial para lar de idosos e acabaram os suicídios. Nunca mais uma pessoa idosa do interior se suicidou. Aqui (Aldeia de Alcalar) já se suicidaram dois, mas vieram de fora, vieram contra a sua vontade.

Costumo dizer que os lugares da Mexilhoeira que falam melhor de Deus não são a igreja nem a capela, são os lugares onde se pratica o amor. Pois Deus é amor.

Depois também me apercebi que havia casais que entravam, marido e esposa, para um quarto. Quando morria um deles, tinham que partilhar o quarto com outra pessoa. Outros, que ainda estavam bem, voltavam para casa. Eu disse: “Tem que haver uma solução para estes casos, para que a família fique na sua casinha”. Tinha outras queixas de pessoas com filhos deficientes que perguntavam para onde iriam os filhos quando morressem. Então pensei numa casa em que os pais pudessem viver num quarto e o filho noutro. Foi isso que me levou a este sonho da Aldeia de São José de Alcalar. Tenho a intuição “isto vem de Deus”, mas depois procuro confirmar com as pessoas fora da Igreja. O senhor presidente da câmara, quando lhe falei no assunto, e era agnóstico, achou fantástico. Disse-me: “Eu ajudo, faço-lhe o projeto”. Isto é de uma consolação enorme. Quando me perguntou se tinha ido buscar a ideia deste projeto à Alemanha, respondi-lhe: “Encontrei-a no Evangelho. Leia-o nas entrelinhas.”

Também se pôs a questão do dinheiro. Eu respondi: “Há uma diferença enorme entre os políticos e os cristãos: os políticos atuam com base na previdência, têm de ter dinheiro para fazer obra; a igreja faz obra para que os cristãos acreditem em nós e nos ajudem. Eu tenho de começar a obra para que o povo acredite”.

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"Memórias de um pároco da aldeia" é o nome do livro do P. Domingos, lançado este verão, que conta a história da sua vida e da sua missão.

Já referiu que veio em 1975, mais o P. Arsénio que trabalhava lá em baixo em Portimão – o pároco da cidade e o pároco da aldeia – mas que esteve sempre à espera que a Província enviasse mais jesuítas para fazer comunidade.

Foram 40 anos à espera. Viemos em 1975 e em 2015 veio a garantia, pela carta oficial do P. Frazão que fundou oficialmente (28 de maio de 2015) a comunidade de Portimão. Em 2012, morreu o P. Arsénio e a paróquia foi entregue ao pároco da matriz que um ano depois a abandonou. O bispo vem-me pedir em 2013 se podia tomar conta da paróquia de Nossa Senhora do Amparo. Dei-lhe a resposta em agosto ainda e tomámos conta na esperança de virem outros jesuítas, o que já estava prometido pelo Provincial P. Alberto Brito. Em janeiro de 2014 veio o P. Luís Amaral, que veio por dois meses e ficou cá três anos. Deus escreve direito por linhas tortas. Ficou cá a preparar a fundação da comunidade, pois o superior só veio em setembro de 2016.

Valeu a pena esperar?

Valeu a pena!

Mas porque não havia essa aposta das paróquias?

Pergunta-me a mim? Não havia porque os jesuítas sempre acharam que o carisma deles era outro.

Que não passava pelas paróquias?

Sim, que não passava. Mas nós fomos enviados para aqui pela Companhia de Jesus, não estávamos por nossa conta e risco. Nessa altura já havia mais de duas mil paróquias nas mãos dos jesuítas no mundo inteiro e já havia 3000 jesuítas a trabalhar em paróquias, que eram 14% do total. Era uma ideia teórica. Depois veio a Congregação Geral 35, em 2005, que tem um capítulo a dizer que as paróquias entram no nosso carisma, pois lidamos com os pobres, com a justiça e as desigualdades. Foi a confirmação de que estávamos no bom caminho. Devo dizer também que foi a nossa ação no Algarve, e a vinda dos noviços que para aqui vieram fazer a prova de inserção social e saíram entusiasmados. Foram eles que lançaram uma campanha positiva acerca do trabalho que se fazia no Algarve e mobilizaram a Companhia. Sentiam-se realizados.

E hoje sente que os jesuítas no Algarve estão para ficar?

Eu já me disse a mim mesmo: pelo menos por mais 40 anos está garantido! A comunidade foi fundada oficialmente. Cheguei a perder a esperança… Se calhar, e escrevo isso no livro, o P. Arsénio e eu também tivemos alguma culpa, pois, apesar de sermos amigos, tomamos aquela atitude…

Nunca trabalharam em comunidade…

A sério, não. Tínhamos visões diferentes.

Mas foram amigos a vida toda?

Toda a vida! 59 anos de amizade, 49 a viver na mesma casa ou perto um do outro. Caso único na Província.

Como olha para as gerações mais novas, com a sua relação com a fé e a prática cristã?

Olho muito positivamente. Já me afligi muito mais sobre o futuro da Igreja, que não depende de nós. Depende de nós na medida em que se não houver cristãos, a Igreja morre, mas vou-me apercebendo que os jovens têm ideais, têm voluntariado… Tenho jovens formados aqui na paróquia que estão a trabalhar noutras paróquias.

Dinamiza%C3%A7%C3%A3o%20pastoral%20enriqueceu%20a%20comunidade%20paroquial%20e%20toda%20a%20freguesia%2C%20que%20beneficiou%20das%20novas%20respostas%20sociais%20criadas.
Dinamização pastoral enriqueceu a comunidade paroquial e toda a freguesia, que beneficiou das novas respostas sociais criadas.

Servem a igreja no local onde vivem, é isso?

Exatamente. Inserir-se onde estão e serem lá úteis. Nós, padres, não temos que nos apresentar sempre a lamentar porque o mundo sempre foi mau, já no tempo de Jesus Cristo. Nós é que inventámos esta mania, e com Salazar e com a proteção da Igreja Católica contra os outros, cruzámos os braços e não fizemos nada. Estamos agora a pagar as favas. Aqui não havia nada e vejo o que surgiu. Sou muito otimista. Não ando à procura daqueles que vão à missa, nem tenho possibilidade de andar a escolher os funcionários, e o Senhor tem-me enviado as pessoas que me fazem falta. De maneira que já não me preocupo muito. Também estou no fim da vida. Estou consolado. Costumo dizer ao Senhor: “Se precisas de mim, tens de me dar saúde e vida. És tu o beneficiado, não sou eu, de maneira que estou ao teu serviço.”

Como vê hoje a Igreja em Portugal, nesta caminhada sinodal, com uma Jornada Mundial da Juventude à porta, ao mesmo tempo que estamos com o tema dos abusos sexuais a ser levantado. Como olha para essa realidade?

Os cristãos são muito pecadores e perdemos muitas vezes esta noção, achamos que são uns santinhos. Cometemos erros, todos temos defeitos, temos de ser mais humildes. A Igreja teve coisas muito piores na História que ultrapassou ou esqueceu, ou fez por esquecer: a inquisição, as Cruzadas, a escravatura, o racismo, as mulheres. Estamos nos tempos novos da verdade, e a verdade faz doer, ninguém gosta de ouvir. Mas faz-nos bem ouvir a verdade. Acho muito bem que com os meios de comunicação social, estamos todos expostos, para sermos elogiados ou sermos marginalizados. É não termos medo do mundo, foi ao mundo que Jesus Cristo nos enviou. O nosso problema é por em primeiro lugar o mandamento do amor. É por aqui que saberão que sois meus discípulos. Enquanto andarmos de volta das igrejas, da liturgia dos templos, e não da liturgia da caridade, estamos fora da nossa missão, acho eu.

Eu receio que a Igreja, depois do Papa Francisco, volte ao mesmo de antigamente. Mas depende da escolha, de nós. Gostaria que os bispos fossem eleitos nas suas próprias dioceses, mal ou bem, dioceses pobres, com mais ou menos clero, mas que cada um se cobrisse com as mantas que tem. Não estou de acordo que venha um bispo de longe para uma diocese que não conhece, já avançado de idade, começar tudo do nada. Era a favor de os Núncios visitarem as dioceses, as paróquias, dialogarem com as pessoas, até em função de saber como orientar essa diocese. Pergunto-me: o que faz um Núncio num país? Custa-me ver dioceses que estão há meses à espera de um bispo. Também era da opinião que os bispos, quando fosse para nomear párocos, não fosse apenas a pastoral do “tapa buracos”, do preencher as vagas, mas que soubessem o que se passava nas paróquias em ordem de quando fosse preciso substituir um pároco, se olhasse para o caminho feito e esse caminho continuasse. Não andássemos nisto de “muda o partido do governo, abolem-se decisões anteriores, agora quem manda aqui somos nós, fazemos tudo diferente”. Isto não é maneira de ser Igreja e desinteressa os leigos que estejam comprometidos, desmobiliza muita gente.

E acha que já há uma colaboração com os leigos como o Papa pede?

Eu tenho-a feito. Se calhar até fui pioneiro aqui na Mexilhoeira, com celebrações da palavra dominicais na ausência do padre, desde 1987, com exéquias presididas por leigos na ausência do padre desde 1995. E o diácono que aqui preparei para tomar conta de uma paróquia, pois eu não preciso de um acólito de primeira classe para estar ao meu lado no altar a ler o Evangelho. Disse-lhe: “Quero que assumas a orientação de uma paróquia”. E foi isso que aconteceu

Fala do Nuno Francisco e da mulher que foram formados aqui e agora estão responsáveis pela paróquia de Odiáxere?

Exatamente. Sei que a diocese pensa que os diáconos podem tomar conta de outras paróquias. O caminho faz-se sempre a partir de baixo e nunca de cima, e por isso, creio que os leigos têm um papel fundamental até para educarem os párocos, se se comprometerem. O problema é que muitas vezes os párocos andam cheios de missas, com quatro ou cinco paróquias, e não têm tempo para rezar, para pensar. Também gostaria que no seminário se começasse a preparar os futuros padres para um novo modo de ser igreja. É todo este esquema que era preciso desmontar e pensar.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.