“Tudo era abundante, propício, prometedor de um futuro brilhante” (Agustina Bessa-Luís, “Inácio de Loiola – A Mística e o Mistério”, Brotéria Maio/Junho 2019). Mas uma queda grave acontece. Na verdade, acaba sempre por acontecer à altivez da espada em riste, à mania postiçadas grandezas. Iñigo de Loiola vê-se gravemente ferido. Não só a perna fora atingida. Essa, mesmo que a muito custo,será endireitada. O sentido da vida é que foi o mais atingido. É a alma que está ferida. Profundamente ferida. Tudo o que fazia sentido perdera sentido. Os desejos de antes revelaram-se vazios. Havia um desejo grande de amar. Mas que amor poderia preencher esse desejo? “Não se emenda a alma como uma perna quebrada”, anota Agustina. É verdade. Não se emenda a alma como se emenda a perna quebrada.
Iñigo começa a anotar o que se passa dentro de si. Desejos. Ânimo. Desânimo. Alegria. Será lenta a convalescença. Progressiva. Primeiro o impulso da mudança radical. Outros desejos. Outro amor. Outro modo de vida. Outro nome. Ser santo como os maiores santos. Ainda melhor do que os melhores. Depois, a segunda depressão, mais densa do que a primeira, e a ideia de suicídio. Não ser mais do que o mais desgraçado dos pecadores. Não ser nada que valha a pena. Por fim, o novo começo. A graça de se ver visto com os olhos misericordiosos de Deus. Por isso, de forma justa. Nem mais, nem menos. E dispor-se a ser só segundo a vontade do Senhor. Inácio decide estudar. Para ‘ajudar as almas’. Esse será o seu modo de ser santo.
A ferida boa de que precisamos é aquela que o próprio Senhor nos poderá fazer no coração. Será essa, só essa, que verdadeiramente nos mudará e nos fará livres para desejar e procurar, encontrar e eleger a vontade de Deus.
Entretanto, Inácio ficará a coxear para o resto da vida. O seu corpo guardará a memória de uma ferida. Como Jacob que, lutando com o anjo, se acha ferido. Como o amado do Cântico dos Cânticos se reconhece ferido de amor pela amada que o seu coração ama.
Poderá acontecer que desejemos que Deus nos afague, mas que não nos fira. Que nos acaricie, mas que não nos atinja o coração. Que nos ilumine, mas não nos queime. Mas poderá o amor de Deus não ferir? Costumamos levar feridas connosco, feridas más que geram ressentimentos, regressões, depressões, desejos, pequenos ou grandes, de desistir ou de nos vingarmos. A ferida boa de que precisamos é aquela que o próprio Senhor nos poderá fazer no coração. Será essa, só essa, que verdadeiramente nos mudará e nos fará livres para desejar e procurar, encontrar e eleger a vontade de Deus. Uma vez feridos por este amor, ousaremos querer e desejar apenas o que for para a maior glória de Deus. Em tudo amar e servir o Senhor. Será possível? Em tudo amar e servir? É excessivo, sem dúvida. Mas, bem vistas as coisas, como poderia ser de outro modo? Seria possível amar e servir só às vezes e em algumas circunstâncias, a 70 ou 90 por centro?
O conhecimento íntimo do amor que o Senhor nos tem, da sua misericórdia infinita, nos atinja e nos fira o coração. Que nos leve à loucura por Cristo, que não é loucura das roupas estranhas ou dos gestos bizarros, mas a liberdade do amor mais perfeito. E nos torne prontos e disponíveis para a missão de tocar as vidas e o mundo com o mesmo amor que fere e que salva.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.