Não existem pobres

Saibamos acercarmo-nos das pessoas em situação de pobreza desde a experiência do bem maior que é presença do Deus consolador que nos irmana. Que Ele faça de nós, neste mundo, testemunhas Suas, de uma sociedade que seja imagem do seu Reino.

Saibamos acercarmo-nos das pessoas em situação de pobreza desde a experiência do bem maior que é presença do Deus consolador que nos irmana. Que Ele faça de nós, neste mundo, testemunhas Suas, de uma sociedade que seja imagem do seu Reino.

Não existem pobres. O que existe são pessoas em situação de pobreza. Em primeiro lugar são pessoas, com os mesmos direitos fundamentais e com a mesma dignidade que o Criador nos deu a todos. E depois existimos nós, a quem a vida e as circunstâncias permitiram que tivéssemos algum conforto e não tivéssemos de lutar diariamente pela sobrevivência.

Mas nada nos garante que um dia não possamos passar pelas circunstâncias de viver esta mesma pobreza radical. A falência de um projeto, a adição a algo que destabiliza drasticamente a minha vida, uma doença, uma catástrofe natural, a fuga de uma guerra ou a condição de refugiados. Por isso importa situarmo-nos, reconhecermo-nos e corrigirmos a nossa relação com essas pessoas que vivem em situação de pobreza. Devemos aprender a tornar essa relação mais humana, assente numa relação justa, interpessoal, e não numa relação causal, casual, assimétrica e interesseira.

O mundo das pessoas que se encontram em situação de pobreza é, antes de mais, para nós, uma ocasião de conversão e de humanização. Uma oportunidade de ficarmos mais conscientes de quem visitamos e de quem nos visita. De ficarmos mais conscientes de quem nos envia e desde onde fazemos a nossa entrega.

A pobreza no mundo é consequência de uma grande mentira. É ação e manipulação do Pai da Mentira. A experiência da fé diz-nos que o ser humano foi criado para descansar. E sob esse descanso habitam todas as formas perniciosas e enganadoras de viver essa grande experiência. Para o cristão o descanso só pode ser Consolação. E a Consolação (com C grande) é um dom, uma dádiva recebida gratuitamente de Deus. Não é algo que possamos conquistar ou adquirir por mérito próprio. Frequentemente confundimos esse dom com os bens de consumo que me podem dar prazer ou gozo. O prazer e o gozo são aparências de uma verdadeira Consolação. Esta, só Deus pode dar. Por isso, na nossa errância pela mentira, lutamos pelo prazer e construímos uma sociedade de interesse cujo fim é o gozo individual e comunitário. Nesta sociedade o mais forte tem acesso à maior quantidade de bens e poderá usufruir deles ao seu gosto e querer, sempre com a ilusão de que nesses bens, e nesse estatuto de posse, possa encontrar descanso, consolação. Nessa circunstância a violência que geramos produz exclusão e coloca pessoas em situação de pobreza. Por vezes, em situação de extrema pobreza.

O mundo das pessoas que se encontram em situação de pobreza é, antes de mais, para nós, uma ocasião de conversão e de humanização. Uma oportunidade de ficarmos mais conscientes de quem visitamos e de quem nos visita. De ficarmos mais conscientes de quem nos envia e desde onde fazemos a nossa entrega.

O mundo das pessoas em situação de pobreza é um mundo onde o poder de acesso aos bens fundamentais está limitado pelas circunstâncias que lhes impuseram ou que se impuseram a si mesmos. Não têm poder nem voz, não têm forma de adquirir nem de usufruir do que é fundamental. As suas vidas tornam-se num grito que desestabiliza o conforto dos que têm em demasia e que resvalam frequentemente na indiferença e na soberba, e por isso importa silenciá-los, iludi-los.

Deus não esquece nenhum dos seus filhos. E aqueles que menos têm, mais aprouve a Deus fazer neles espaço de visita e de Consolação, tornando-os instrumento e ocasião dessa mesma Consolação. A humildade de Maria vem da sua disponibilidade em receber a Consolação, em não estar centrada de si nem na busca de um prazer que a possa saciar. É o exemplo de uma vida justa e acertada ao “pão de cada dia” que lhe permite viver exclusivamente da Consolação de Deus e da Sua providência. A Consolação apaga-se quando há demasiado ruído de consumo e de poder, demasiada riqueza. Entramos numa espiral de indisponibilidade, porque o nosso ser fica cativo de uma ordem de preenchimento, ela sim desoladora. Serás feliz se tiveres e puderes gozar o que adquirires pelo teu próprio esforço e mérito. Mas Deus segue outro caminho, dá o bem maior, a Consolação, onde houver  condições para a poder receber. Nas circunstâncias de pobreza o ser humano está mais apto a sentir a Consolação de Deus e de sentir o seu convite a viver numa ordem de Consolação. Não que Deus deseje essa pobreza material, mas, efetivamente, nessa mesma pobreza, não há tantas distrações, nem os recetores da Palavra estão tão preenchidos. A carência cria um espaço onde Deus quer entrar e Consolar. Consolando, Deus torna possível a transformação e a saída da pobreza. Ao mesmo tempo instaura um novo estilo de relação com as coisas e com os outros, propício à mesma Consolação. Por isso a nossa missão junto das pessoas em situação de pobreza não é tanto fazer, mas mais bem consolar. E, em nome da Consolação, fazer o que for necessário. As pessoas em situação de pobreza são os nossos mestres, aqueles que podem dizer uma palavra de autoridade sobre a oportunidade da Consolação de Deus. Num certo sentido, a sua “riqueza” vem ao encontro da nossa “pobreza”, seremos assim servidos por eles se estivermos dispostos a dar e a escutá-los em reciprocidade. O dia dos pobres é o reverso do dia dos ricos, mas ambos coincidem. Bem melhor, deveria ser o dia do encontro, da justa relação onde somos instrumento do consolo de Deus uns para os outros. E, ao mesmo tempo, um forte questionamento da lógica do consumo e do prazer que alienam as nossas vidas e nos afastam do verdadeiro descanso.

O dia dos pobres é o reverso do dia dos ricos, mas ambos coincidem. Bem melhor, deveria ser o dia do encontro, da justa relação onde somos instrumento do consolo de Deus uns para os outros. E, ao mesmo tempo, um forte questionamento da lógica do consumo e do prazer que alienam as nossas vidas e nos afastam do verdadeiro descanso.

A pessoa em situação de pobreza é, por excelência, o lugar de onde se realiza a verdadeira “Contemplação para Alcançar Amor”, de que nos fala Santo Inácio no final dos seus Exercícios Espirituais. O lugar do acontecimento da Consolação, porque Deus assim o quis. É lá que Ele tem lugar marcado connosco, desde lá. Não há outro lugar tão intensamente propício para que Deus se manifeste e me faça ocasião de experiência de Consolação. E quando falo de Consolação não falo de prazer nem de posse, mas do acesso gratuito à presença mesma de Deus que é Consolação. A pessoa em situação de pobreza é o lugar teológico, por excelência, de manifestação de Deus, nenhum outro lugar está tão habitado por Deus. Só existem outros dois tão proximamente propícios, o do Louvor (Liturgia) e o da Reverência (Coração Humano).

A minha abertura às pessoas em situação de pobreza é, finalmente, uma abertura à experiência de Deus que se comunica permitindo a Compaixão (ver a pessoa e a sua circunstância) e a Justiça (ação conforme a necessidade). Gestos consequentes do estado de Consolação e que são, eles mesmo, ocasiões de Consolação.

Quando experimento a força do lugar teológico que a pessoa em situação de pobreza é, não posso deixar de ir ao seu encontro, um encontro marcado com ela na presença de Deus. É lá que Ele me espera, é lá que Ele nos convoca a sermos fraternos. Nesse encontro, a pessoa em situação de pobreza e eu, comungamos de uma relação de reciprocidade, onde consolado e consolador coincidem, porque é Deus que se manifesta plenamente em ambos. Ficam criadas finalmente as bases de uma sociedade que pode ser verdadeiramente fraterna.

Se me aproximo da pessoa em situação de pobreza, sem a consciência primeira desta Consolação que vem de Deus e que nos irmana, então caio na tentação de possuir essa pessoa, e ela defender-se-á de mim fechando-se à comunhão ou encontrando também ela uma forma mais arrojada de, também ela, me possuir.

Neste dia “Mundial dos Pobres” afirmo esta experiência de abertura à Consolação como experiência primeira de saída de mim mesmo em direção à pessoa em situação de pobreza. Afirmo a experiência dessa Consolação como teofania de Deus no mundo e construtora da justa e verdadeira reciprocidade entre os seres humanos. Afirmo a Consolação como única retribuição esperada para aqueles que se desejam fazer próximos da pessoa em situação de pobreza.

Saibamos nós, neste “Dia Mundial dos mais pobres”, acercarmo-nos das pessoas em situação de pobreza desde a experiência do bem maior que é presença do Deus consolador que nos irmana. Que Ele faça de nós, neste mundo, testemunhas Suas, de uma nova sociedade que seja finalmente Imagem e semelhança do Seu Reino.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.