Não estou sozinho

“As três mortes de Lucas”, de Henrique Raposo, além de um romance brilhante é uma metáfora bíblica sobre o Êxodo, a fé, o sofrimento, a bondade, a beleza e a inexplicável razão que nos mantém vivos. Um livro de fé que mostra o mundo sem ela

“As três mortes de Lucas”, de Henrique Raposo, além de um romance brilhante é uma metáfora bíblica sobre o Êxodo, a fé, o sofrimento, a bondade, a beleza e a inexplicável razão que nos mantém vivos. Um livro de fé que mostra o mundo sem ela

O livro de Henrique Raposo é um livro sobre o Êxodo, um livro religioso. Uma viagem espiritual sobre o sofrimento, a ausência de Deus e a fé, a bondade e a maldade da condição humana. E escolhas: o livre arbítrio. Li-o duas vezes e das duas vezes li dois livros diferentes: um romance, na primeira vez, angustiante e viciante, que nos leva para onde não queremos ir, que desinquieta e emociona. Um romance que fica colado à pele, levamos as personagens para o nosso dia-a-dia, simpatizamos com umas e odiamos outras, mas nenhuma nos é indiferente. E todas amparadas por descrições e diálogos que ficam gravados. Henrique Raposo obriga-se a apresentar-nos os dois lados de cada uma, e não o maniqueísmo infantil dos bons e dos maus. As suas personagens conseguem o pior e o melhor, são fracas e fortes, boas e más, são criadas por Deus e pelos homens. E nós andamos por ali a saltar, a julgar todas, como fariseus que somos, sem conseguirmos um veredito final porque nos revemos sempre em todas elas. E no fim de cada capítulo lavamos as mãos como Pilatos e como fazemos sempre que o GPS nos leva por caminhos entre bairros de prédios sinistros para enganarmos as filas de trânsito. Entre o medo que um pneu estoure e nos obrigue a parar e o dever moral de saber quem mora e como se vive ali, aceleramos. É assim que lemos este livro: somos levados entre um nevoeiro cerrado e, quando a escuridão se torna insuportável, descemos à horta da Judite, um cantinho do paraíso. Ali sossegamos.

Em A Estrada, de Comarc McCarthy, um pai com o filho viajam por uma América destruída, entre um verdadeiro inferno de cinzas e gelo, assassinos e caos em direção à costa, sem saber o que os esperam numa esperança que não faz qualquer sentido. O que os leva a continuar é o amor um pelo outro, não há racionalidade nenhuma, apenas a escolha em não morrer. A América de Henrique Raposo é um morro com vista para o Estádio da Luz, um caos feito de tijolo e sem lei. A angústia que não nos deixa adormecer, essa, é a mesma no romance de Raposo e na distopia de Comarc McCarthy.

A história em “As três mortes de Lucas Andrade” é também uma metáfora bíblica sobre a libertação, o percurso no deserto, o bezerro de ouro, a passagem pelo mar vermelho. Está lá tudo. Lucas Andrade está morto desde o princípio: não há ressurreição, não há Novo Testamento, nem Páscoa.

A história em “As três mortes de Lucas Andrade” é também uma metáfora bíblica sobre a libertação, o percurso no deserto, o bezerro de ouro, a passagem pelo mar vermelho. Está lá tudo. Lucas Andrade está morto desde o princípio: não há ressurreição, não há Novo Testamento, nem Páscoa. Ele não se salva porque escolhe não se salvar. Foi este o segundo livro que li – um livro de fé, da falta dela e da graça em a ter. Faltei ao lançamento deste livro porque achei que seria irrelevante a minha presença: não era. Ouvir Henrique Raposo falar sobre um dos melhores livros que li na minha vida teria sido parecido a assistir a uma preleção de Dante sobre o seu Inferno.

“Não estou sozinho”, é esta a frase que Henrique Raposo repete uma e outra vez pela boca de Lucas Andrade, de Ruço e de João Miguel – os nomes do personagem principal que mudam ao ritmo das suas várias vidas. Saber que não se está sozinho, é o desafio mais difícil de um cristão; a consciência, a certeza de que Deus nos ama e que, de facto, não estamos sozinhos, muda tudo: dá sentido e alivia o sofrimento, recentra-nos no essencial e, mais do que tudo, explica o inexplicável da vida. Convoca-nos para a missão que está inscrita na nossa alma. O único herói deste livro é um personagem secundário, alguém que é bom porque faz coisas boas, um ícone de generosidade. Só por isso. Uma mulher que não quer mudar o mundo, que não é genial nem idealista. E é assim que o vai mudando, iluminado o caos com bondade, uma minúscula semente de mostarda que cresce até ao Céu chamada Judite.

Henrique Raposo, através de cada uma das suas personagens, dando relevo especial às mulheres, explica aquilo que nos custa a entender sobre Deus e o sofrimento. Perante a incredibilidade de um deus que não trava o sofrimento de quem Ele e Lucas amam, a Joana – uma rapariga que transporta as cicatrizes de violações perpetuadas pelo pai desde que é criança –, ela explica-nos em linguagem simples: “Deus não tem culpa da merda que fizemos, da mesma maneira que uma mãe não tem culpa pela merda que o filho faz quando já é adulto (…). Deus cria-te, não é? mas não é um bófia para andar sempre atrás de ti, nem bófia, nem ditador, nem paizinho para andar sempre a amparar os golpes do menino. Se fizeste merda é porque quiseste fazer merda, não culpes Deus por isso. O meu pai fez-me aquilo porque é um filho da p.. Deus criou-o para fazer coisas bonitas, e fez-me a mim, não foi?”. Está aqui tudo: o Inferno, a beleza, a missão, a liberdade, a maldade. Num parágrafo e em forma de catequese na página 388.

Henrique Raposo escreveu um livro sobre a realidade nua e crua que não se vê, sobre os muros de pedra e betão, sobre a condição feminina, sobre a vida das periferias e, o mais difícil, sobre a natureza humana, as suas fragilidade, intrínseca maldade e inexplicável bondade. O livro de Henrique Raposo é uma distopia para os cristãos: uma Sexta-Feira Santa que não adormece. Tudo isto, escrito e descrito divinalmente.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.