Dois tiros fatais tiraram a vida ao P. Frans van der Lugt no dia 7 de abril de 2014, em plena guerra na Síria. Cinco anos depois de ter sido assassinado, o jesuíta holandês que ajudou a salvar centenas de pessoas sitiadas na cidade de Homs será homenageado pelos jesuítas e pela comunidade local, numa cerimónia que contará com a presença do Superior-geral dos Jesuítas, P. Arturo Sosa, sj. No domingo, será inaugurado um memorial e uma exposição com os principais momentos da sua vida, no jardim da comunidade religiosa, onde foi morto, e onde vivem agora cinco jesuítas.
Neste momento evocativo da memória do P. Frans estará também o Provincial dos Jesuítas, P. José Frazão Correia, sj e o P. Gonçalo Castro Fonseca, jesuíta português em missão na Síria há um ano e meio que terá oportunidade de contar no Ponto SJ como tem sido a sua experiência em Damasco, onde trabalha no Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS Syria).
Frans van der Lugt era holandês mas vivia há mais de 50 anos na Síria na altura em que a Cidade Velha foi cercada pelas tropas do regime. Um cerco de durou vários meses e do qual o jesuíta ajudou a libertar muitas pessoas, que se encontravam desesperadas, com fome, recusando-se contudo a abandonar aquele que dizia ser o seu povo. Foi uma voz ativa junto da comunidade internacional, denunciando em vários órgãos de informação a situação por que passavam as populações durante os primeiros anos da guerra. A sua morte suscitou, por isso, uma enorme reação em todo o mundo e foi acolhida com comoção por parte de várias entidades, entre as quais o Papa Francisco.
O jesuíta tinha 75 anos quando foi assassinado e encontrava-se no país há mais de 50. Era um homem de pontes que acolhia e ajudava todos, independentemente de serem católicos ou muçulmanos. Antes de começar a guerra civil, trabalhara em Al Ard, num centro para crianças deficientes que ele próprio ajudou a criar.
Quais terão sido os pensamentos que percorreram a mente e a alma do P. Frans no momento em que foi alvejado? É isso que procura reproduzir a animação produzida pelos jesuítas holandeses (para ver em baixo), e que fala de dor e violência mas essencialmente de amor e esperança. “Até ao meu último suspiro esperei pelo fim do ódio, da luta e da dor”, retrata esta animação, cuja versão portuguesa conta com a voz do ator Ruy de Carvalho.
Duas balas. Duas. Diretas à minha cabeça. Hoje é dia 7 de abril de 2014. Alguém acaba de bater à porta da nossa casa em Homs. Abro a porta, mas não o conheço. A fome turva-me a vista. Atordoado aproximo a minha mão. Uma réstia de esperança acende-se em mim. Será que traz comida? Quem é? De onde vem?
BANG. Dispara. É tudo muito rápido. Não dá tempo para o ver. Então, dispara outra vez.
Nem quero acreditar.
Não poderei voltar a sofrer com toda esta boa gente que vive à minha volta?
Não poderei voltar a oferecer-lhes consolo e esperança?
Não voltarei a ter voz para os animar? Nem ouvidos para os escutar?
O meu nome é Frans van Lugt. Na Síria tratam-me por Abouna Francis. Padre Francisco. Sou um jesuíta holandês. Vivi na Síria durante quase cinquenta anos.
Até que me mataram.
Vivia na casa dos jesuítas no coração de Homs. A guerra destruiu e destroçou o nosso bairro. Os soldados bloquearam todos os acessos. Muitos de nós fomos morrendo literalmente de fome.
Até ao meu último suspiro esperei pelo fim do ódio, da luta e da dor.
Contudo, pude ver algo de belo no meio de toda esta miséria: um presente. Nós, aqueles que permanecemos ali tornámo-nos verdadeiramente irmãs e irmãos.
Lembro-me de uma missa de Domingo de Ramos. À nossa volta caiam bombas, a nossa Igreja estava em ruínas. Mas juntámo-nos para rezar. Pedi ao Imã que lesse um texto do Corão. Fê-lo com um enorme entusiasmo. Depois as pessoas comungaram. Eu distribuía a comunhão. Quando a mulher do Imã se aproximou de mim desvaneceram-se subitamente as poucas intransigências dogmáticas que ainda permaneciam em mim.
Apesar da fome e da violência nunca pensei abandonar o nosso bairro atacado. Nem mesmo quando muitas pessoas foram incentivadas a sair. O nosso bairro tem apenas um quilómetro quadrado. No entanto, aqui convivem pacificamente muçulmanos e cristãos de diferentes proveniências. Eu identifico a Síria com esta forma de conviver que conseguimos construir. E disto eu não podia desertar.
Há apenas alguns dias preparei a Páscoa. Imagine-se, aqui celebrámos a Páscoa! A celebração da passagem da morte à vida! Da morte à vida! Quis dizer às pessoas que a vida nasce de um tenebroso abismo e que aqueles que vivem nas trevas verão uma luz brilhante…. Também em Homs há esperança.
E agora isto…
A morte. Morri.
Como se tudo tivesse terminado.
No entanto a história continua.
Sim, a história continua.
Talvez te perguntes porque digo isto no meio de tanta miséria. Será que não me dou conta de que a Morte baila no meu corpo?
Vou tentar explicar-te. Tudo está relacionado com um Homem cuja vida também terminou de um modo violento. Ele intuiu que o esperavam muitos sofrimentos e a morte. E teve medo. Angustiou-se. E, apesar de tudo, seguiu o Seu caminho. Visitou as pessoas, libertou-as. Continuou a amar, a amar e a amar…
Toda a minha vida quis ser como este Jesus de Nazaré. Tudo começou quando tinha dezoito anos. Então namorava com uma rapariga de quem gostava muito. Mas não podia continuar com ela. Simplesmente porque havia outro desejo em mim. Não queria viver só para ela, mas para todo o mundo. Queria ter as minhas mãos livres e os meus braços vazios. Para enchê-los de todas as pessoas que pudesse encontrar.
Todas as pessoas: cristãos, muçulmanos, pessoas sem fé… Todas.
Tal como Jesus, que soube viver de mãos vazias. Foi por isso que me tornei sacerdote.
Quando afirmo que a história continua, é porque acredito no amor de Deus. É o amor que contínua a sua história. Ninguém deve perder a esperança.
Enfim, agora a história continua sem mim. Esta é uma ideia nova para mim e parece-me estranha.
Mas talvez te possa pedir uma coisa: não te enfureças com aquele que me matou. Isso só iria provocar mais dor e mais ódio.
Mas sente-te triste pela distância que havia entre mim e o homem da pistola. Estou triste porque não tive tempo de escutar a dor que habitava no fundo do seu coração. Deveria ser uma dor enorme. Tão grande que foi capaz de matar uma pessoa.
E agora, quem poderá cuidar das feridas daquele homem?
Eu já não posso. Outros podem. Tu podes.
Porque o amor continua.
Simplesmente continua.
Animação: Rens Wegerif
Ilustração: Jedi Noordegraaf (Studio Vandaar)
Autor do monólogo: Rick Timmermans
Coordenação: Nikolaas Sintobin SJ
Voz da versão portuguesa: Ruy de Carvalho
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.