A diocese de Tete, em Moçambique, vai iniciar o processo de canonização de dois jesuítas, um deles português, que foram mortos na missão de Chapotera, em 1985. O P. Sílvio Moreira, português de 44 anos, e o P. João de Deus Gonçalves Kamtedza, moçambicano de 54, foram brutalmente assassinados no dia 30 de outubro, por um grupo armado que os levou da sua casa, em Chapotera, e violentou, deixando os corpos abandonados no mato. Apesar de os autores morais do homicídio nunca terem sido apurados, D. Diamantino Antunes, bispo de Tete, acredita que os dois missionários foram mortos porque denunciavam as atrocidades da guerra e defendiam a dignidade do povo da Angónia, sendo considerados, por isso, “testemunhas incómodas” dos abusos das autoridades políticas e policiais. A diocese acredita no seu martírio e vai propor a sua canonização, num processo que já tem data para arrancar: 14 de agosto.
“O crime não teve motivações religiosas, mas o martírio não é só o ódio à fé, mas também às virtudes ligadas à fé, como a justiça ou a caridade”, explica ao Ponto SJ, D. Diamantino Antunes, que esteve esta semana em Portugal, onde veio recolher informações e testemunhos para dar seguimento à causa de canonização dos jesuítas. O bispo de Tete esteve na Cúria Provincial, a consultar o arquivo da Província Portuguesa, conversou com vários jesuítas, e deu a conhecer os passos do processo que já foram dados, bem como o caminho que é preciso percorrer para elevar os dois sacerdotes à condição de mártires.
D. Diamantino sublinha as virtudes dos dois missionários, profundamente empenhados em servir pastoralmente a população e em dignificá-la, mesmo que isso implicasse denunciar o clima de violência que se vivia na região, e, com isso, colocar em risco a própria vida. Os relatos que existem dão conta da sua coragem e lealdade ao povo, ao ajudar a sepultar os mortos (mesmo perante ameaças das autoridades), ao animar pastoralmente as comunidades, administrando os sacramentos, por vezes às escondidas, para não atrair a atenção das forças militares. O matrimónio era um exemplo disso, explica o bispo de Tete, pois os padres perceberam que após um casamento, o exército vinha recrutar o noivo para a guerra, deixando a mulher sozinha. Passaram, por isso, a realizá-los de forma clandestina.
Outro episódio que demonstra bem que os jesuítas não tinham medo de enfrentar as autoridades é relatado pelo P. José Augusto Sousa, que foi superior do P. Sílvio quando exerceu o cargo de Vice-provincial da Companhia de Jesus em Moçambique, entre 1975 e 1981. “Certa vez, encontrou quatro corpos trucidados entre o milho da machamba da missão de Satémwa e foi fazer queixa à polícia de Vila Ulongué. Pensou-se, na altura, ter sido a própria polícia a matá-los. Era um lutador da justiça e dos direitos humanos. A polícia não ficou contente com este confronto do P. Sílvio, ao ter encontrado os corpos e ido interrogar a polícia”.
Corajosos, destemidos e lutando sempre pelo povo, os dois missionários escolheram continuar a servir a sua igreja, mesmo depois de serem aconselhados a abandonar a região (até pelos seus superiores), numa altura em que muitos religiosos eram raptados e mortos. Entre os vários relatos que já ouviu, o bispo de Tete sublinha um que lhe chegou da parte do guarda da missão de Chapotera, que vivia com os jesuítas, e a quem o P. Sílvio e o P. João de Deus aconselharam que regressasse à sua aldeia com a família, precisamente uns dias antes do ataque. “Eles intuíram que podia acontecer qualquer coisa e quiseram ficar na mesma. Aceitaram voluntariamente ficar.”
Este testemunho coincide com outros que já foi recolhendo e com a frase que atravessa muitos deles, do Evangelho de São João: “O bom pastor não abandona as ovelhas no momento do perigo”. D. Diamantino diz que tem escutado esta citação bíblica da parte dos que testemunham a importância da missão dos dois jesuítas nesta região de Moçambique onde a Companhia de Jesus tem concentrado a sua ação pastoral nas últimas décadas. No momento delicado e violento que o país vivia, o P. Sílvio e o P. João tinham consciência de que ao retirarem-se, aconteceria à sua comunidade o mesmo que estava a ocorrer a outras: viriam os militares e queimariam as casas para que as pessoas saíssem, numa política de terra queimada. “Os missionários, ficando ali, eram uma segurança para todos. Eles não quiseram abandonar as pessoas.”
Os dois sacerdotes estavam em Chapotera há pouco mais de um ano, quando se deu o ataque, em 1985. Imediatamente a seguir à independência de Moçambique, em 1975, a missão de Lifidzi foi ocupada pela Frelimo e os jesuítas aí residentes ficaram sem a grande igreja e as demais instalações da missão, que compreendia os internatos masculino e feminino, um hospital, oficinas de carpintaria, serralharia e outras dependências. Começou-se logo a pensar, como alternativa a esta missão de Lifidzi ocupada, em criar uma pequena nova missão no lugar de Chapotera. Os jesuítas foram, assim, martirizados num lugar onde os cristãos estimavam a presença dos padres, não só por evangelizarem o povo, mas também por ajudarem na área da saúde e educação.
Os documentos e relatórios que agora estão a ser consultados e compilados pelo responsável da diocese de Tete dão conta de que na noite de 30 de outubro um grupo armado levou os jesuítas para um lugar incerto. Alguns cristãos da aldeia deram pela sua ausência e julgaram-nos raptados pela Renamo, mas só quando no dia 4 de novembro não compareceram na eucaristia é que começaram a circular rumores de que estavam mortos. Um desses cristãos avisou o P. Domingos Isaac, a viver no Malawi, do sucedido e este telefonou para Maputo a dar a triste notícia ao superior dos jesuítas em Moçambique.
O relato da altura feito pelo P. Luís Gonçalves confirma a fama de martírio que o bispo de Tete tem encontrado nos testemunhos da população, que foi transmitindo este relato de geração em geração: “Não há dúvida de que os padres João de Deus e Sílvio Moreira bem podem ser considerados mártires da luta pela justiça. Eram testemunhas incómodas. Tinham conhecimento das atrocidades cometidas naquela região. Haviam começado a protestar e a denunciar. Podendo sair, permaneceram no seu posto, junto do seu povo perseguido de ambos os lados, assustado pela violência…”
As informações recolhidas levam ainda a crer que o alvo principal do ataque seria o P. João de Deus, um sacerdote de grande inteligência, com uma obra extraordinária e muito querido pelo povo da Angónia, do qual se fala até que teria sido convidado para ser bispo. Mas quando os atacantes pegaram nele para o levar, o P. Sílvio terá dito: se vai o meu colega, eu também vou.
D. Diamantino conta ao Ponto SJ como tem sido surpreendido pelo impacto que o testemunho destes missionários ainda suscita entre a população. Apesar de ter conhecido esta história há mais de 20 anos – quando viu uma pagela dos missionários na vitrine de uma relojoaria em Maputo, cujo dono tinha sido paroquiano do P. Sílvio – e de mais tarde ter ouvido falar dos jesuítas em muitas ocasiões, o bispo de Tete diz que só no ano passado, na celebração dos 35 anos do martírio, tomou consciência da importância destas mortes. “Fiquei impressionado com a multidão que apareceu para a missa. E explicaram-me que era sempre assim, mesmo quando os padres não organizavam nada”, confessa, deduzindo imediatamente: “onde há fumo há fogo e, nestes casos, a fama é o sinal que está por detrás de algo importante”.
Na sequência deste episódio, interpelou o conselho de consultores diocesanos e, vendo o entusiasmo dos padres mais velhos que os conheceram, percebeu que devia avançar. Consultou a Companhia de Jesus e a Conferência Episcopal, e depois escreveu para a Santa Sé, para a congregação para a causa dos santos. Agora seguem-se outros pareceres e consultas, para saber se há alguma dificuldade, inconveniente ou impedimento a esta causa. Até porque, explica, “há questões políticas por trás e não é uma coisa pacífica”. Contudo, remata D. Diamantino, “é bom não procurar tanto os autores mas as causas e as razões das mortes e, sobretudo, o testemunho.”
A abertura da fase diocesana da causa de canonização já tem data e local marcado: será no dia 14 de agosto, no Seminário de Zóbué, na presença de toda a diocese.
Sobre os missionários martirizados
O P. Sílvio Alves Moreira nasceu em Rio Meão, Vila da Feira, a 16 de abril de 1941, sendo o mais novo entre 13 irmãos. Em 1952 entrou no Seminário Menor que a Companhia possuía em Macieira de Cambra, e mais tarde para o noviciado, em Soutelo. Depois estudou Humanidades e Filosofia em Braga, tendo, a seu pedido, embarcado para Moçambique para fazer o magistério, onde regressou mais tarde, depois de frequentar a Teologia na Universidade Católica de Lisboa. Em 1972 foi ordenado sacerdote e regressou a Moçambique onde deu aulas no seminário do Zóbué e depois exerceu atividade pastoral no Matundo. Em 1981 foi para Maputo, onde foi pároco e professor. Depois de um tempo a descansar em Portugal, regressou a Moçambique em 1984, sendo destinado à Angónia, onde foi, juntamente com o P. João de Deus, assistir a comunidade cristã da missão de Lifidzi, concretamente em Chapotera.
O P. João de Deus nasceu em Vila Mouzinho, na Angónia, a 8 de março de 1930, filho de pai português e mãe moçambicana. Aí foi batizado e fez os estudos secundários em Portugal, no Seminário de Macieira de Cambra. Estudou filosofia em Braga e teologia em Barcelona. Segundo o P. José Augusto Sousa, era um homem extraordinário, próximo e amigo do seu povo, inspirando alegria e entusiasmo com quem trabalhava.
Este artigo foi redigido com base em informações recolhidas pelo P. António Santana, o P. José Augusto de Sousa e o P. Francisco Correia, bem como após a consulta de documentos do arquivo da Província Portuguesa da Companhia de Jesus e do livro “Vale a pena dar a vida”, editado pela Editorial AO, em 1987.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.