“Houve quase um desmoronar da rede social”

Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar, diz ao Ponto SJ que muitas IPSS fecharam de um dia para o outro e milhares de pessoas ficaram sem apoio. Novas casos também estão a surgir. Rede de emergência alimentar já está no terreno.

Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar, diz ao Ponto SJ que muitas IPSS fecharam de um dia para o outro e milhares de pessoas ficaram sem apoio. Novas casos também estão a surgir. Rede de emergência alimentar já está no terreno.

Como se está a refletir esta pandemia na vida das famílias?

Vivemos tempos muito desafiantes e estranhos. De um momento para o outro, no setor social tudo ficou bastante afetado, parece que soçobrou a rede de apoio social em Portugal. Esta rede é basicamente constituída por centros sociais paroquiais e conferências de São vicente de Paulo, e por associações, misericórdias, e ouros grupos sociocaritativos que, em muitos casos, têm à frente pessoas idosas que, com estas recomendações, tiveram de ir para casa. Além disso, muitas respostas sociais foram encerradas com as recomendações do governo.

Como é a situação em concreto?

As creches, ATL, jardins infantis, centros de dia e centros de convívio fecharam. De um dia para o outro tudo fechou. E muitas conferências de São Vicente de Paulo encerraram sem sequer avisarem os utentes. Isto cria uma pressão terrível nas pessoas que recebem apoios alimentares e que têm baixos salários, e para quem este apoio alimentar era absolutamente determinante para poderem equilibrar as contas da casa. Para alguns, era até a única refeição que consumiam. Por exemplo, as famílias cujos filhos comiam o pequeno almoço, almoço e lanche na creche e ao jantar nem sequer tinham uma refeição completa. Estas crianças agora estão em casa, as mães também, muitas vezes com ordenados reduzidos porque estão com o regime de assistência à família. No fundo, houve quase um desmoronar da rede social de apoio.

A rede social que costuma ser o suporte nas situações de crise está ela própria em crise?

Sim, está muito muito afetada. Isso levou-nos a tentar responder de forma positiva e o Banco Alimentar, com o apoio da Entre-Ajuda, lançou a Rede de Emergência Alimentar, para que não haja ninguém em Portugal que fique sem comida na mesa.

Isto cria uma pressão terrível nas pessoas que recebem apoios alimentares e que têm baixos salários, e para quem este apoio alimentar era absolutamente determinante para poderem equilibrar as contas da casa.

Mas estamos a falar das famílias que já eram apoiadas pela rede de apoio. E as situações novas?

Estamos a falar das famílias que eram apoiadas por estas instituições e que deixaram de receber porque a instituição fechou. Mas também de muitos casos novos que nos surgem diretamente.

Como estão a chegar esses casos novos e em que quantidade?

Criámos um formulário no site do Banco Alimentar e, entre sexta-feira e ontem à noite, tínhamos 927 casos. Destes, só 20% já eram apoiados por instituições. O resto eram casos novos. São pessoas que perderam o emprego porque trabalhavam em pequenos comércios ou cabeleireiros, ou porque eram prestadores de serviços. São incríveis os testemunhos do que as pessoas dizem. Estamos a viver tempos muito difíceis. É muito violento.

O Banco Alimentar continua a ter produtos disponíveis para distribuir?

Sim, temos os produtos que já estavam destinados para as instituições, parte das quais fechou, e continuamos com as mesmas doações. O que fizemos foi tentar montar uma rede alternativa, recorrendo às juntas de freguesia. Contactámo-las, e estamos a montar uma rede para que, em cada freguesia de Portugal, haja um ponto de distribuição para onde as pessoas possam ser encaminhadas. O acréscimo de pessoas vai fazer com que, se calhar, as pessoas recebam um pouco menos. Tem de dar para mais.

Mas como é que os utentes das instituições conseguem ser canalizados para estes novos pontos de distribuição?

Os novos utentes são contactados através do formulário online, pelo Banco Alimentar. Os outros, que já eram apoiados, pedimos às instituições que fecharam que, mesmo a partir de casa, contactassem os seus beneficiários, avisando-os de que há um novo ponto de distribuição.

O que fizemos foi tentar montar uma rede alternativa, recorrendo às juntas de freguesia. Contactámo-las, e estamos a montar uma rede para que, em cada freguesia de Portugal, haja um ponto de distribuição para onde as pessoas possam ser encaminhadas.

Acha que esta situação das instituições se vai prolongar? Não estão a conseguir reorganizar-se?

Para já, é tudo muito recente, foi tudo muito abrupto. Tenho a certeza de que este é um setor muito ágil que se vai reinventar. Às vezes, este tipo de situações faz nascer novas parcerias e novas soluções. Na área social isso é determinante, porque nós temos uma pobreza estrutural muito grande (um quinto da população vive com menos de 400 euros por mês, e um milhão de pessoas vive com menos de 250 euros). Ou seja, um décimo da população não é livre, é condicionada, depende de outros para poder viver. Quando são apoiadas de forma muito assistencialista – e temos uma transmissão geracional da pobreza que é muito acentuada -, alturas como estas põem as pessoas a pensar que havia parcerias que não eram estabelecidas, até porque havia pequenos poderes cristalizados. Acredito que há aqui uma oportunidade de se estabelecerem parcerias e até de haver um acompanhamento mais humano, onde não se perca o amor. Este é um momento para poder estruturar a rede de apoio para que a solidariedade não perca a caridade.  Se calhar é um desafio necessário e tenho a certeza de que o setor social vai responder presente.

Mas ainda estamos na fase do embate…

Sim, estamos. Por isso, lançamos esta rede de emergência alimentar que se quer que seja o mais breve possível, até que as instituições voltem a assumir o seu papel.

É uma espécie de almofada enquanto as organizações não se organizam?

Sim, e sobretudo é um reaproveitar de canais que existem nas juntas de freguesia e também de verbas para o apoio social.

O atendimento do Banco Alimentar às instituições que estão abertas continua?

Sim, claro, com as restrições que o nosso plano de contingência prevê, sim. O atendimento demora um pouco mais pois só podemos ter duas instituições no armazém. Temos também outros voluntários, mais novos, que estão sem aulas, porque os mais antigos tiveram de se resguardar na sua saúde.

Pode explicar melhor como as pessoas podem aceder à rede de emergência?

Basta irem ao site do Banco Alimentar e preencher os formulários onde se podem inscrever para pedir apoio alimentar, ser voluntário ou ser entidade que se quer constituir como ponto de entrega e recolha de alimentos. Podem também ser entidades que queiram doar alimentos e apoios financeiros. Abrimos também o canal para doações online e quem está em casa pode doar sem sair de casa. A gestão dos voluntários também se pode fazer através da Bolsa do Voluntariado.

O que podem fazer os voluntários?

Ajudar na elaboração dos cabazes e na entrega em casa dos alimentos das pessoas que não podem sair. Estamos a arregimentar pessoas mais novas para este serviço, uma vez que as mais velhas estão resguardadas.

Vamos ter um embate forte na economia, e vamos ter situações económico-sociais muito muito difíceis. Temos de estar preparados para elas, mas, acima de tudo, temos de acautelar que os canais e redes montadas estão bem aproveitados.

E o que deve fazer quem está a precisar de ajuda alimentar?

Ir ao site, preencher o formulário e será contactado um dia ou dois depois.

Consegue estimar o impacto, a longo prazo, desta situação na vida das famílias?

Eu penso que não vamos viver dias fáceis, mesmo quando passar a crise do coronavírus. Vamos ter um embate forte na economia, e vamos ter situações económico-sociais muito muito difíceis. Temos de estar preparados para elas, mas, acima de tudo, temos de acautelar que os canais e redes montadas estão bem aproveitados. Não nos podemos dar ao luxo hoje de desperdiçar nada, nem os alimentos, nem a boa vontade das pessoas. É um tempo em que, com serenidade, temos de aproveitar tudo o que existe para levar a quem dele carece. É um tempo de partilha.

Vivemos aliás numa época de enorme partilha entre as pessoas, basta ver as redes sociais…

Sim, passamos o tempo a receber e a partilhar coisas nos nossos telefones. A proposta é que seja um tempo de partilha real, não apenas digital. Não perdendo o sentido da comunhão com quem precisa. É um momento em que a partilha é presença. Estamos presentes, estamos cá.

Entrevista de Rita Carvalho 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.