A primeira notícia é que a vida é difícil. Já nos dizia Scott Peck, psiquiatra e psicoterapeuta, no seu livro “O caminho menos percorrido” dos anos 70. Nestas primeiras linhas, nenhuma novidade.
A segunda notícia é que, nesta vida, todos nós temos “mazelas”. Feridas. Pequenas, grandes ou médias. Ninguém está livre. Faz parte do andar por este mundo. No entanto, podemos ter alguma, pouca ou nenhuma consciência delas.
Na minha experiência como psicóloga clínica, um dos temas mais recorrentes é a “legitimidade” para sofrer como se está a sofrer. O que me tem levado a questionar sobre qual a medida legítima para o sofrimento.
A propósito desta questão, pergunto-me: “se fraturarmos o braço direito, de preferência com o osso partido, sobretudo para quem é destro, o que fazemos?” Se tudo correr bem, tratamo-lo para o tentar curar. Não queremos que piore, senão a dor expande-se para o braço todo e, em vez de um, desencadeamos dois problemas.
Porque é que procuramos quem trate o nosso braço? Em primeiro lugar, porque conseguimos ver a fratura, seja à superfície, seja através de meios de diagnóstico. Em seguida (e sobretudo) porque dói. E, eventualmente, porque nos condiciona, seja no escrever, no teclar no telemóvel, no carregar o saco das compras, ou no pegar o filho ao colo.
Surgem alturas na vida em que embatemos de frente com a profundidade das nossas feridas. Condicionam-nos. Vivemos bloqueados, tristes, desencontrados, indecisos ou transformados em alguém que não queremos ser. As feridas, não tratadas, condicionam a nossa liberdade interior.
As feridas cá de dentro não se vêem a olho nu nem através dos meios de diagnóstico, que resultam numa espécie de fotografia. E, portanto, vivemos como se a dor não existisse, exigindo-nos o mesmo como se não estivéssemos em sofrimento. Andamos, trabalhamos, relacionamo-nos, casamos, temos filhos, discutimos, amamos e a vida continua.
Biologicamente, a dor é um sinal de que algo não está bem. Um alerta com que viemos equipados. O sofrimento ou o mal-estar têm a mesma função: alertar-nos para olhar e cuidar do que está ferido. E surgem alturas na vida em que embatemos de frente com a profundidade das nossas feridas. Condicionam-nos. Vivemos bloqueados, tristes, desencontrados, indecisos ou transformados em alguém que não queremos ser. As feridas, não tratadas, condicionam a nossa liberdade interior. Doem, infetam o melhor de nós e assim impedem o nosso potencial.
O que nos pode ferir? As faltas de amor. Seja na forma, na qualidade, na consistência, e/ou na disponibilidade. Em qualquer etapa e área da vida, o desamor magoa. Também já nos dizia Scott Peck nos anos 70. E outros tantos autores, antes e depois dele.
Como tal, na Psicologia a relação só pode ser de amor. “A relação terapêutica é uma relação de amor genuíno” (Scott Peck, 1978). O psicólogo acolhe a pessoa inteira, tal como o pedido e o ponto de partida em que está, de forma a restaurar as feridas de amor que carrega consigo e a ajudá-lo a dar passos de liberdade na direção da melhor versão de si próprio.
Traduzindo para crentes, esta relação (terapêutica) de amor pode ler-se sustentada num Amor Maior, incondicional, que trabalha para que cada um de nós se torne aquilo que é chamado a ser: imagem e semelhança de Deus.
E nesta relação, como em qualquer relação de amor genuína, as duas pessoas crescem. Revejo-me no que Scott Peck afirma: “Tinha muito pouca noção que o trabalho envolvido tinha que ver com o desenvolvimento espiritual dos pacientes, e certamente nenhuma noção de que envolveria o meu próprio desenvolvimento espiritual”.
PS-Este texto foi escrito na sequência do encontro da Associação dos Psicólogos Católicos, “Descobrir o amor na Psicologia”, no dia 5 de Junho de 2019.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.