Eutanásia e morte medicamente assistida – importância da História e das palavras na construção de um imaginário coletivo

As palavras têm peso e o uso atento não é mero pormenor. As histórias moldam o inconsciente coletivo e definem a visão do mundo e de nós próprios. Se diluirmos o conteúdo das palavras, se as empregarmos sem reflexão, esvazia-se o sentido.

As palavras têm peso e o uso atento não é mero pormenor. As histórias moldam o inconsciente coletivo e definem a visão do mundo e de nós próprios. Se diluirmos o conteúdo das palavras, se as empregarmos sem reflexão, esvazia-se o sentido.

Eutanásia significa, à letra, “boa morte” (do grego, “eu” + “thánatos”), como se espera que sejam todas! Morte Medicamente Assistida significa, literalmente, processo de morrer de uma pessoa acompanhado ou assistido por um médico, enfermeiro ou outro cuidador de saúde, o que, mais uma vez, se espera que sejam todas aquelas que pedem essa assistência!

Parece um preciosismo de quem pode resvalar para a obsessão do significado das  palavras, logo quando toda a gente sabe o que se quer dizer “atualmente” com Eutanásia  ou Morte Medicamente Assistida. Contudo, não creio que seja um pormenor, e explico-me.

Somos seres contadores de histórias. Desde os inícios da humanidade que, quando nos faltava o sentido último ou a explicação da realidade, recorríamos ao uso de histórias. Não recorro a um “nós” majestático ou meramente como recurso estilístico. De facto, enquanto seres contadores de histórias, incluo-nos a todos nesses primórdios da humanidade. Herdamos as suas histórias e, por isso, a sua cultura.

As primeiras histórias de que temos registo são ilustradas e encontram-se por toda a parte, nas cavernas deste mundo. Elas procuram revelar a essência do ser humano primordial, isto é, a sobrevivência. Por isso vemos desenhadas histórias de caça e de luta, acreditando os antigos que, ao capturar os animais pela imagem, os ajudariam a capturá-los na realidade.

Quando os gregos surpreenderam o mundo com o seu pensamento profundo e adentrado, fomos presenteados com os mitos, os deuses, os semi-deuses, homens contra deuses, homens contra homens, “odisseias” e “ilíadas” sem fim. Tudo isto para tentar  responder às grandes questões de sempre: o que é o ser humano? O que é o mundo? E qual o sentido disto tudo?

Quando os gregos surpreenderam o mundo com o seu pensamento profundo e adentrado, fomos presenteados com os mitos, os deuses, os semi-deuses, homens contra deuses, homens contra homens, “odisseias” e “ilíadas” sem fim. Tudo isto para tentar  responder às grandes questões de sempre: o que é o ser humano? O que é o mundo? E qual o sentido disto tudo?

Gosto particularmente do Mito do Andrógino, escrito por Platão n’O Banquete, narrado pela boca de Aristófanes. Segundo este, o ser humano nem sempre foi como o conhecemos atualmente. No início, era um ser globoso, com quatro pernas, quatro braços, dois troncos siameses, uma só cabeça e, nesta, dois rostos. Era também um ser dotado de grande ambição, o que começou a assustar os deuses. Estes, por medo de uma revolução, decidiram dividir o ser humano em duas metades iguais, resultando a fisionomia por nós conhecida e reconhecida diante de qualquer espelho. Depois, dispersaram os seres humanos recém formados pelo mundo. Contudo, este ato apenas agravou a ambição do ser humano. Agora, a esta, juntava-se-lhe uma inquietude existencial que não permitia que cada ser descansasse enquanto não encontrasse a sua cara-metade, o seu amor que o completaria.

Hoje, somos herdeiros desta história! Mas porque aconteceu tal como está escrita? Não creio… Então é apenas uma história que se conta às crianças para lhes ensinar o amor? Não me convence… No fundo, somos herdeiros porque nos reconhecemos nesta inquietude existencial, capaz de desafiar qualquer deus na busca daquilo que nos complete, isto é, de um sentido de plenitude.

A forma como os gregos antigos abriram o ser humano ao entendimento de si mesmos foi através destas narrativas mitológicas. A ideia do ser humano foi sendo construída a partir da vivência e matizada em histórias que nos ajudam à compreensão do próprio ser. Nas escolas, as obras de Homero eram de leitura obrigatória, não para aprender a língua grega ou crítica literária, mas para aprender o próprio ser humano.

Jesus, mais tarde, assume a sabedoria dos gregos e, afirmando-se o “Logos”, o sentido e razão das coisas, não se permite ficar estratosférico. A encarnação continua-se nas suas palavras. As parábolas são a encarnação da palavra de Jesus, a sabedoria grega do Cristianismo. Com as parábolas, Jesus toma a realidade concreta das pessoas (a agricultura, a pesca, as refeições, etc.), ordena-a num argumento (1) lógico e conta uma história fecunda de sentido e plena de simbologia. Podemos voltar à mesma parábola  diariamente, e há sempre novidade que surge. Tal é o poder da história que fala do interior.

Com o Iluminismo, séculos mais tarde, as histórias ganharam matizes mais matemáticas e binárias. A sociedade racionalizada, ‘filha’ de Descartes e companhia, assim o exigia! Era preciso escrutinar os detalhes, dividir e separar, para olhar isoladamente cada coisa e ficar só com o que era claro e distinto, indubitável. Assim, chegam-nos as narrativas dos pormenores, cujo realismo crítico predomina. Também somos herdeiros deste racionalismo feroz! Aliás, como temos memória curta, sentimo-nos constantemente mais herdeiros dos recentes que dos antigos. Um dia, talvez, ninguém se há-de lembrar de Descartes. Espero que não aconteça!

Com Descartes começou a clara separação entre o “corpo” e a “mente”, duas narrativas intocáveis entre si. A primeira, uma narrativa decadente, que perde faculdades e que termina na morte. A segunda, uma narrativa luminosa, onde reside toda a verdade e todo o ser, narrativa triunfante e decadentemente autossuficiente, nunca morre, tudo pode. A dissociação das narrativas do “corpo” e da “mente”, já para nem falar da “alma”, é  demasiadamente formadora do nosso inconsciente coletivo. No fundo, no fundo, vivemos aí, e somos muitas vezes filhos desse tempo.

Mas e hoje, que histórias contamos? Que palavras usamos? Nem sei bem responder. Tudo se conta, a informação multiplica-se, e a narração esmorece.

Mas não entremos por aí. Interessa perceber, isso sim, como ao longo da nossa História, fomos moldados pelas palavras e pelas histórias que contámos de nós, ser humano, e do mundo. Em cada momento da História, havia um inconsciente coletivo tão forte quanto impercetível para o comum dos mortais, que moldava a forma de pensar, falar, escrever e agir de cada pessoa. Poder-se-á dizer que Galileu veio muito antes do seu tempo. Mas não culpemos os pobres que o queimaram. Eram somente escravos do imaginário coletivo e da narrativa de compreensão da humanidade da época. Não venho desculpar esclavagistas e Inquisições, Hitler ou Nero. Venho somente alertar que é silenciosamente que o maior mal entra. Segundo Hannah Arendt, o mal radical é a banalidade. Por outras palavras, a banalidade do mal é a ausência de um pensamento profundo sobre o que se faz e a razão por que se faz. Quando nos limitamos a executar, muito simplesmente entregues à obrigação e ao contexto cultural onde nos inserimos, podemos incorrer num grande mal que nem vislumbramos. É neste sentido que se ouve dizer que precisamos de profetas, isto é, pessoas que arrisquem romper o nosso imaginário coletivo, questionando-o, para ver o que há depois deste, para além deste, mais fundo que este.

É por isso que defendo que as palavras têm peso e o seu uso atento não é um mero pormenor. As histórias moldam o inconsciente coletivo e definem a visão coletiva do mundo e de nós próprios. Se diluirmos o conteúdo das palavras, se as empregarmos sem reflexão, esvazia-se o sentido e, então, tudo passa a ser tudo, ou seja, nada. Ao abusarmos do uso das palavras que significam outra coisa, não só moldamos o nosso inconsciente, como toldamos o verdadeiro entendimento da realidade.

Ao usarmos os termos ‘eutanásia’ e ‘morte medicamente assistida’ como temos feito, reduzimos o seu significado pleno a um significado particular. Além disso, estamos inconscientemente a cristalizar no nosso imaginário comum a ideia de que a Eutanásia e a Morte Medicamente Assistida são formas exclusivas de garantir uma morte digna e boa para a generalidade dos doentes em sofrimento grave. No entanto, isto não se verifica no dia a dia da prática clínica. A morte provocada não acaba com o desespero, acaba com a vida.

Ao usarmos os termos ‘eutanásia’ e ‘morte medicamente assistida’ como temos feito, reduzimos o seu significado pleno a um significado particular. Além disso, estamos inconscientemente a cristalizar no nosso imaginário comum a ideia de que a Eutanásia e a Morte Medicamente Assistida são formas exclusivas de garantir uma morte digna e boa para a generalidade dos doentes em sofrimento grave. No entanto, isto não se verifica no dia a dia da prática clínica. A morte provocada não acaba com o desespero, acaba com a vida. Aliás, a maior parte das vezes que uma pessoa pede uma injeção letal que termine com  a sua vida, o que realmente está a pedir pode ser outra coisa. Faz parte da arte da Medicina a investigação profunda das motivações da pessoa e a descoberta daquilo que realmente a  pessoa pode estar a pedir. Será uma despedida, um abraço, a mão de um ente querido, um  sonho por concretizar? Muitas vezes, pode mesmo ser simplesmente uma presença que escute a sua história de vida, para garantir que a sua vida foi boa. Pois, para alcançar uma boa morte, é necessário viver uma boa vida, sem desespero, mas repleta de esperança.

Quando se conta uma história bonita, como pode ser a do fim da vida, não se use palavras erradas! Ou pelo menos, conheçam-nas e expliquem-nas, alargando o seu significado sem o restringir a uma definição concisa, fechada e enviesada. É por esta razão que agradeço a pessoas sensíveis às palavras e que as ordenam de tal modo a contarem histórias de vida e redenção, mesmo quando a morte está à porta. Vale a pena ler histórias eutanasiantes, como nos contam Maria Margarida Teixeira, em O que quero dizer ao morrer ou a jornalista Susana Moreira Marques, em Agora e na hora da nossa morte.

Acredito que será por uma cultura do cuidado e uma cultura da vida verdadeira que  poderemos criar um inconsciente coletivo fecundo. Está do nosso lado a construção deste  nosso imaginário coletivo, certos de que ainda nos atirarão à fogueira por não verem hoje aquilo que poderá ser evidente no futuro.

 

Nota 1: Interessante verificar como nós chamamos ao conteúdo de um filme, e não só, “argumento

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.