Trabalho numa ONGD para crianças e jovens, num bairro social. Ontem fui chamado à escola profissional onde alguns dos jovens que apoiamos estudam para falar com a Diretora. As dificuldades são muitas, desde os custos do transporte e da alimentação até à capacidade humana para o cumprimento das tarefas, a pontualidade e a assiduidade. Todos os meios – que as famílias destes jovens não têm -, são colocados ao seu dispor para que completem o 12.º ano e continuem os estudos. Mas tudo são dificuldades, já que tudo lhes falta. No mesmo dia, soube que uma rapariga da capital deseja entrar em Medicina e não consegue. A família coloca todos os meios à sua disposição para que possa seguir aquela que, está convencida, é a sua vocação. Incluindo o apoio de uma academia especializada e a possibilidade de ir para o estrangeiro.
No final do dia, doía-me o coração. Pensava nos tremendos contrastes de duas realidades tão assimétricas, apenas devido ao berço onde uns e outros nasceram. Como aos primeiros lhes falta tudo para garantirem uma escolarização básica; e como a segunda tem todos os meios ao seu alcance para prosseguir os estudos e construir uma carreira de sucesso.
Assinala-se no dia 14 de novembro o V Dia Mundial dos Pobres. O que será, afinal, ser pobre? Ultimamente, todos somos pobres, pois, como criaturas humanas, somos e sempre seremos carentes, necessitados, dependentes… mas a verdade é que o amor, as oportunidades, as riquezas e muitos outros bens que de Deus recebemos não são distribuídos por todos com a mesma justiça. Daí que a palavra “pobre” só tenha sentido em relação à palavra “rico”. E inferioriza quem é apelidado de tal, criando uma desigualdade entre pessoas concretas.
Na carta para o V Dia Mundial dos Pobres, o Papa Francisco afirma que “os pobres são revelação do próprio Deus, porque Jesus os preferiu como amigos e toda a obra de salvação começou com eles”. Na verdade, reconhecemos Deus nos “pobres”, na sua “tribulação e indigência”. As próprias bem-aventuranças, carta magna do anúncio do Reino de Deus, fala deles: “Felizes os pobres…”. O Papa tem-nos dito vezes sem conta e insiste: Os mais pobres e indigentes deste mundo revelam-nos os “traços do rosto do Pai”. Devemos olhar para eles, não só porque são “pobrezinhos”, mas porque têm muito a ensinar-nos sobre quem É Deus Pai e Jesus Cristo. Por isso, insiste o Papa, “A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas e a colocá-las no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo neles” (Evangelium Gaudim, 198).
Os pobres clamam pela nossa atenção! Pelas desigualdades produzidas pela sociedade do lucro e pela aparente indiferença com que todos vivemos no nosso conforto e segurança, no nosso berço privilegiado. Clamam por maior igualdade e justiça; por solidariedade e partilha; clamam para que lhes devolvamos a dignidade à qual têm direito, como qualquer ser humano.
Os pobres clamam pela nossa atenção! Pelas desigualdades produzidas pela sociedade do lucro e pela aparente indiferença com que todos vivemos no nosso conforto e segurança, no nosso berço privilegiado. Clamam por maior igualdade e justiça; por solidariedade e partilha; clamam para que lhes devolvamos a dignidade à qual têm direito, como qualquer ser humano.
Olhar e reconhecer os pobres de hoje, que lutam pela sobrevivência, por uma vida menos precária, nas nossas cidades e bairros, implica entrar no combate desigual contra toda a indiferença. “Os pobres não são pessoas ‘externas’ à comunidade, mas irmãos e irmãs cujo sofrimento se partilha, para abrandar o seu mal e a marginalização, a fim de lhes devolver a dignidade perdida e garantida a inclusão social”. Trata-se de reconhecer em cada pessoa uma irmã e um irmão, alguns deles mais necessitados de atenção e auxílio. Reconhecer a sua pobreza requer a nossa compaixão, a qual nos permite sair ao seu encontro e agir em sua ajuda concreta. Muitos dos nossos gestos caritativos podem ser modos quase automáticos, até insignificantes, de ajuda fraterna, diante da hercúlea tarefa que supõe mudar as lógicas injustas do nosso mundo. “A esmola é ocasional, ao passo que a partilha é duradoura”.
A luta conta a pobreza começa no pobre que levantamos do chão, alimentamos, vestimos e acolhemos. Depois acompanhamos, capacitamos, fortalecemos, amamos… até ao fim da sua vida, da nossa vida. Essa luta trava-se num compromisso vitalício! De resto, como Deus faz connosco. E, para começar, precisamos de ganhar liberdade interior, pois “se não me libertar das riquezas, nunca conseguirei dar a vida por amor”. Requer uma profunda conversão interior, de mudança de estilo de vida, para que o nosso testemunho seja credível e transformador.
“Jesus fez-se pobre para nos enriquecer com a sua pobreza” (2Cor 8,9). A encarnação é o abaixamento de Deus à nossa humanidade, em nosso favor, para que o seu Filho desse a vida por nós. Jesus é o primeiro pobre de todos, dando-nos o exemplo de uma entrega total. Por isso os pobres foram sempre os seus preferidos, os seus melhores amigos.
Celebremos esta jornada do dia mundial dos pobres, respondendo, com verdade, à pergunta: “Que fiz, que faço, que farei, por Ti, Senhor?”… nos teus pobres! Que faço ou que farei pelos pobres? Desta resposta, de todas as nossas respostas, parte o firme propósito e compromisso conjunto pela intervenção nas mudanças estruturais e profundas que o nosso mundo necessita. Talvez um dia todos os jovens possam ter acesso aos meios necessários para terminar com êxito o 12.º ano. E talvez um dia todos possam seguir a sua vocação e profissão, sendo justamente remunerados pelo seu trabalho.
Nota1: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/poveri/documents/20210613-messaggio-v-giornatamondiale-poveri-2021.html, [2]
Nota 2: Idem, [3]
Nota 3: Idem, [3]
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.