O P. Bruno Franguelli é atualmente vice-reitor do Santuário Nacional de São José de Anchieta. Fez o seu magistério, etapa de trabalho apostólico que os jesuítas fazem antes de estudar Teologia, convivendo com o jesuíta espanhol recentemente assassinado no Perú. Neste entrevista, feita através de mensagens pessoais trocadas no facebook, fala-nos da sua experiência da Amazónia, da sua relação com o P. Carlos Riudavets,sj e das dificuldades que se colocam aos missionários que vivem na Amazónia. Palavras que nos ajudam a conhecer o imenso trabalho escondido que passa despercebido nas grandes notícias do mundo.
Que testemunho nos pode dar da sua relação com P. Carlos Riudavets, sj?
Em 2013 fui destinado pelo provincial para fazer o magistério (etapa de trabalho apostólico que os jesuítas fazem antes do estudo da teologia) na Amazónia peruana, onde nós jesuítas temos uma Prelazia (território confiado por um Bispo) confiada aos nossos cuidados. Inicialmente, estive num local mais urbano por alguns meses, mas depois de ter conhecido a parte da selva, pedi para estar mais próximo da realidade indígena. Foi assim que conheci o P. Carlos Riudavets, sj que me acolheu com muito carinho para fazer parte da missão do colégio de alunos internos Fé e Alegria de Yamakayentsa.
Permaneci pelo menos um ano no colégio. Recebi a missão de ser professor de religião e catequista. Tínhamos mais de 200 adolescentes e jovens indígenas debaixo dos nossos cuidados. A comunidade era composta por apenas três jesuítas:o P. Carlos, um irmão jesuíta e eu, escolástico (jesuíta em formação). Quando lá cheguei, naturalmente tudo era uma grande novidade. O facto de morar dentro da Amazónia é muito atrativo num primeiro momento, mas depois, o dia a dia torna-se muito exigente, num quotidiano escondido e com poucos recursos. Neste sentido, eu admirava a persistência do P. Carlos.
Lembro-me que havia uma escada improvisada numa ravina. Quando chovia, tudo aquilo se tornava escorregadio e quase intransitável. Cheguei ao pé do P. Carlos e disse-lhe “Por que não fazemos uma escada de cimento naquele local, pois é perigoso e os professores e alunos podem magoar-se!” Ao que ele respondeu: “Bruno, estou aqui há mais de 30 anos e ninguém partiu o pé naquele local, eles estão acostumados, e não vai ser agora que tu chegaste que eles se vão magoar!”
Ele tinha razão! Eu era apenas um dos muitos jesuítas que transitavam por ali sem demorar-se muito, e ele era o único que permanecia há muitos anos e totalmente imerso naquele trabalho escondido e exigente. Todos os dias, na pequena capela ao lado da nossa casa, celebrávamos a Eucaristia. Ali, num pequeno altar ornado segundo a cultura indígena, o P. Carlos erguia o cálice onde se derramava o sangue de Cristo. Mas nenhum de nós poderia imaginar, que depois de alguns anos, o seu próprio sangue seria derramado naquele mesmo lugar.
Ali, num pequeno altar ornado segundo a cultura indígena, o P. Carlos erguia o cálice onde se derramava o sangue de Cristo. Mas nenhum de nós poderia imaginar, que depois de alguns anos, o seu próprio sangue seria derramado naquele mesmo lugar.
O P. Carlos era um homem simples, reto, firme em suas decisões e muito concentrado na sua missão. Era diretor do colégio, mas era muito mais que isso. A ele recorriam os alunos quando estavam doentes ou precisavam de algum conselho. Não media esforços para se levantar até de madrugada para preparar algum remédio para um aluno doente. Além disso, era um homem pacífico, respeitado e querido por todos.
Qual a importância do trabalho do projeto Fé e Alegria e o seu impacto para as populações da Amazónia em que estava a escola em trabalhou e morreu o P. Carlos?
Quando imaginamos um colégio, facilmente pensamos num complexo fechado, com suas aulas de aula separadas por paredes e uma estrutura rígida. Na verdade, isso nada tem a ver com o colégio de Yakakay entsa. A estrutura era muito próxima daquelas que existem nas tribos indígenas da região, com salas de aula anexas a um dormitório e bem distantes umas das outras. O colégio sempre foi muito estimado e respeitado por toda a região. Muitos líderes indígenas eram seus ex-alunos. Quando precisava de visitar alguma região indígena, quando me identificava como professor do Colégio, as portas eram abertas facilmente. O P. Carlos, neste sentido, era muito conhecido e amado por todos. As comunidades indígenas das etnias awajum e wampis sabiam da importância de ter um colégio que respeitava a cultura deles e acolhia seus filhos para educá-los com qualidade sem que seus costumes e tradições fossem perdidos.
O P. Carlos, neste sentido, era muito conhecido e amado por todos. As comunidades indígenas das etnias awajum e wampis sabiam da importância de ter um colégio que respeitava a cultura deles e acolhia seus filhos para educá-los com qualidade sem que seus costumes e tradições fossem perdidos.
Fale-nos um pouco da dificuldade da ação pastoral na zona da Amazónia. É difícil o compromisso com a justiça naquele lugar?
Para exercer um trabalho missionário na Amazónia é necessário aceitar viver uma vida simples, anónima e escondida. Muitos, como eu, chegam entusiasmados, mas depois vão-se dando conta de que a realidade é diferente daquela que muitas vezes romanceámos. É preciso ter uma boa preparação psicológica e ter uma motivação consistente que se enraíze gradualmente na missão. Além disso, é indispensável que o missionário deseje aprender a língua nativa local para compreender desde dentro a cultura, o seu modo de pensar e os seus costumes. Lembro de modo especial a vida exemplar de tantos jesuítas, como São José de Anchieta no Brasil, que começou sua missão aprendendo a língua tupi.
A situação na Amazónia é muito complexa. Parece que, ainda hoje, as histórias do início da colonização das américas se repetem. Naquela região por exemplo, muitas empresas mineiras utilizam a ingenuidade de algumas famílias indígenas para ocupar as suas terras e explorar seus territórios. Assim, tribos inteiras são obrigadas a migrar em busca de sobrevivência. Além disso, no aspecto religioso, a disseminação de seitas evangélicas provoca nos indígenas uma rejeição da sua própria cultura e se tornam vulneráveis à exploração desses líderes religiosos. Outro factor difícil na região é a forte superstição que existe entre os indígenas que traz consequências gravíssimas na qual se acusam uns aos outros de bruxaria e famílias inteiras tornam-se vulneráveis diante das discórdias e guerras internas.
Evangelizar a Amazónia significa, principalmente, defender nossos irmãos vulneráveis. É preciso preparar os povos amazónicos para resistir e trabalhar para que os interesses de multinacionais, muitas vezes favorecidos pelos nossos países, não se sobreponham sobre estes nossos irmãos que durante séculos sofrem por apenas defenderem quem são e o que lhes pertence.
A missão evangelizadora na Amazónia é um verdadeiro desafio. Para que esta exista é necessário um verdadeiro intercâmbio cultural no qual se reconhece as sementes divinas presentes na outra cultura, se as assume e só deste modo se anuncia o Evangelho da Vida. Deste modo, evangelizar a Amazónia significa, principalmente, defender nossos irmãos vulneráveis. É preciso preparar os povos amazónicos para resistir e trabalhar para que os interesses de multinacionais, muitas vezes favorecidos pelos nossos países, não se sobreponham sobre estes nossos irmãos que durante séculos sofrem por apenas defenderem quem são e o que lhes pertence. Que o humilde testemunho do P. Carlos nos inspire, principalmente neste momento, em que a Igreja de todo o mundo é convocada a olhar para esta região do mundo tão injustiçada e ferida e dar uma resposta concreta e coerente com o Espírito de Cristo.
Fotos cedidas pelo entrevistado.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.