É certo que ressuscitou (?)

Apesar da libertação da região de Ghouta, na Síria, em tempo de Páscoa, o P. Gonçalo Castro Fonseca sj deixa uma chamada de atenção: "a paixão continua". E os sinais desta paixão, não obstante a ressurreição, são ainda muito visíveis.

Apesar da libertação da região de Ghouta, na Síria, em tempo de Páscoa, o P. Gonçalo Castro Fonseca sj deixa uma chamada de atenção: "a paixão continua". E os sinais desta paixão, não obstante a ressurreição, são ainda muito visíveis.

Na Síria, ao cumprimento pascal entre cristãos “Cristo Ressuscitou!” (Al MessiahQam) responde-se “É certo que ressuscitou!” (HaqanQam). Para mim, como estrangeiro, a novidade deste modo de cumprimentar faz-me ir mais fundo no alcance das palavras. Dou por mim a responder em tom de pergunta. É certo que ressuscitou?

É verdade que há uma semana comemorou-se uma passagem. O exército sírio reconquistou quase a totalidade da região de Ghouta, periferia de Damasco. Ghouta estava ocupada pela fação rebelde desde do início do conflito na Síria, há sete anos. O contínuo combate entre o exército e a fação rebelde fazia-se sentir de um modo muito forte nas ruas de Damasco e sobretudo nos bairros vizinhos à zona de combate, nomeadamente no bairro onde temos o nosso centro do JRS (Serviço Jesuíta ao Refugiado). Estes últimos três meses foram marcados por eventos aterradores, sobretudo os últimos dias que antecederam a tomada de Ghouta por parte do exército.

Na noite do derradeiro dia vivi um misto de alívio e indignação. Alívio porque já não havia combates, deixaram de ouvir-se os aviões e os bombardeamentos, deixou de haver o risco de sermos apanhados desprevenidos por uma bomba. Vislumbrava-se já ali naquela noite o retomar do quotidiano, se não na sua normalidade, ao menos em segurança. Podia-se adivinhar os reencontros depois de semanas vividas em medo e angústia. Um alívio vivido como se fosse uma experiência de paz depois da tormenta. Poderia até ter interpretado como a experiência pascal que antecedia à própria Páscoa. Poderia ter afirmado “É certo que ressuscitou!”.

Mas a indignação que senti ao ver celebrar essa “vitória” como se de um jogo de futebol se tivesse tratado, ao ver uma romaria de carros a apitarem e de bandeiras em punho e tiros para o ar, ao escutar as pessoas a darem os parabéns (Mabruk) umas às outras, fez-me e faz-me sentir uma enorme resistência na afirmação da certeza da ressurreição. Não estou em crise de fé, pelo contrário; acredito mais ainda na ressurreição. É apenas uma chamada de atenção: a paixão continua.

É verdade que Cristo ressuscitado também foi reconhecido pelos sinais da paixão. Os sinais da paixão estão muito vívidos nas nossas histórias. São muitas as feridas que estes tempos deixaram. Foram muitos os sonhos e vidas roubadas. Estou ainda à procura de reconhecer a ressurreição nos sinais da paixão que ainda ensombram os nossos dias.

Mas se a nossa vida continua, não obstante os sinais da paixão e se o nosso trabalho retoma o vigor de antes, apesar das feridas, o sofrimento continua. Já não nas nossas ruas, é verdade; mas em tantas outras localidades aqui na Síria, como em tantos outros lugares. Não posso deixar de ter presente a imagem do Ecce Homo ou a imagem do sepulcro, quando penso nos milhares de crianças e mulheres encurralados (os homens – aqueles que sobreviveram – foram levados para parte incerta) em campos, onde qualquer tipo de ajuda é inacessível. Quando penso no futuro – não tanto no daqueles que acolhemos porque lhes é dado horizonte, mas de tantos que, tendo escapado à morte, continuam a subir um calvário; quando penso no seu futuro, não consigo não imaginar uma longa paixão.

Resistir à afirmação da certeza da ressurreição e caminhar pela dúvida faz-me visitar lugares interiores que são reflexo também daquilo que vejo e experimento. Neste deserto pascal – poderia dizer – há uma certeza que me conforta e me dá esperança: “Eis que estarei convosco todos os dias até ao final dos tempos” (Mt. 28, 20) Se está presente naqueles que ainda estão a subir o calvário, então: “É certo que ressuscitou!”

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* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.