Continuação e desenlace do episódio da semana passada.
1. Como mel para a boca
No filme Voyage of Time, de Terrence Malick, um personagem dirige-se a Deus dizendo «Mother». «Mother, what do I love when I love you?» («Mãe, o que é que eu amo quando te amo?»). Será, na verdade, uma forma apropriada de se dirigir a Deus? Se perseverar, encontrará a resposta abaixo…
2. Um texto bíblico
O SENHOR avança como um herói,
como um guerreiro acende o seu ardor;
lança o grito de guerra,
caminha com valentia contra os seus inimigos.
Desde há muito tempo que guardo silêncio,
que permaneço calado e me contenho.
Agora grito como a parturiente,
estou ofegante e oprimido.
(Is 42, 13-14)
3. O esclarecimento
Nestas linhas do livro de Isaías é Deus quem fala e é Deus quem afirma: «como a parturiente,
estou ofegante e oprimido». Esta comparação interpela o crente que, espontaneamente, tem de Deus uma imagem masculina.
Prolonguemos então a reflexão iniciada na semana passada.
E quanto ao sexo de Deus?
Quando Deus se revela, adapta a sua Palavra às mentalidades daqueles a quem se dirige. Para que o ser humano O possa conhecer, Deus utiliza «categorias» adequadas à sua cultura. Numa sociedade patriarcal, como a sociedade antiga, Deus é compreendido como Pai, aquele que dá a Lei.
Ora, é notável que, mesmo em tal contexto, nas Escrituras hebraicas, Ele se apresente ao mesmo tempo como «masculino» (Pai) e como «feminino» (Mãe). Como sublinha o teólogo Olivier Clément: «O mistério divino, em particular, está para além da oposição entre o masculino e o feminino, integrando tanto o simbolismo de um como do outro. A Bíblia atesta várias referências à ternura maternal de Deus, fala das suas entranhas de misericórdia, rahamim¸ no sentido uterino».
No seu fresco da Capela Sistina, Miguel Ângelo representa Deus como um pai. Barbudo.
É claro que, para os cristãos, o facto incontornável da Encarnação de Deus reforça o lado masculino do modo de Deus se dar a conhecer.
No culminar da revelação divina, é em Jesus de Nazaré, sem dúvida homem – pois até foi circuncidado (Lc 2,21) – que Deus assume um corpo humano.
Mas este homem nasceu de uma mulher, Maria, que é venerada como Mãe de Deus (Theotokos). Isto coloca o «feminino» muito próximo do divino! E foi também a mulheres que Ele confiou em primeiro lugar o segredo maior da sua revelação: as «Santas Mulheres» (Maria Madalena e suas amigas) que O seguiram até à cruz e ao sepulcro e que foram as primeiras, antes dos apóstolos homens, a anunciar que Ele ressuscitou.
Mais ainda: mesmo na sua encarnação masculina, o homem-Deus compara-se à «galinha que reúne os seus pintainhos sob as asas» (Mt 23,37).
O Evangelho segundo S. João evocará o «seio do Pai» (Jo 1,18), sugerindo que Deus é ao mesmo tempo pai e mãe. E as Odes de Salomão, poemas místicos judaico-cristãos, evocarão o Filho e o Espírito como os dois seios que nutrem a Criação com um leite de imortalidade.
No seu celebérrimo ícone da Trindade, o santo iconógrafo mostra a Trindade sob a forma de três anjos – criaturas assexuadas – que visitam Abraão.
4. A palavra final
É a um Padre da Igreja que deixamos a palavra de conclusão. Clemente viveu em Alexandria entre 150 e 215, há quase 2000 anos. Demonstra que a questão não é nova:
«Na sua inefável essência, Deus é Pai. Na sua compaixão por nós tornou-se Mãe. O Pai, por amor, feminizou-se».
(Clemente de Alexandria, Que rico será salvo?, 37)
Nota: Toda a nossa gratidão vai para o P. Christian Venard, irmão do nosso diretor científico, que forneceu material para o esclarecimento (ponto 3) dado neste episódio.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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