Crítica de cinema: Roma

Um dos elementos destacados em relação a Roma é o facto de ter sido produzido não por uma entidade tradicional do mundo do cinema, mas pela empresa de conteúdos para streaming, a Netflix.

Um dos elementos destacados em relação a Roma é o facto de ter sido produzido não por uma entidade tradicional do mundo do cinema, mas pela empresa de conteúdos para streaming, a Netflix.

Filme muito aguardado, Roma alcançou, no último Festival de Veneza, o galardão para o melhor filme, O Leão de Ouro. Prémios sobre obras suas conhece Cuarón com frequência: o seu anterior filme (Gravity, 2013), por exemplo, recebeu sete Oscars da Academia. Mas o Leão de Ouro, na carreira de qualquer cineasta, é um prémio europeu de grande prestígio, juntamente com Cannes e Berlim. Por outro lado, Roma significa o regresso de Cuarón, em muitos anos, como realizador, ao México natal, pois que tem desenvolvido intensa actividade nos estúdios norte-americanos.

Um dos elementos destacados em relação a Roma é o facto de ter sido produzido não por uma entidade tradicional do mundo do cinema, mas pela empresa de conteúdos para streaming, a Netflix. Por um lado, este facto originou as maiores reticências por parte das produtoras tradicionais pelo facto de o filme ter sido admitido à selecção do Festival de Veneza. Por outro lado, tratando-se de um realizador da importância de Alfonso Cuarón, a expectativa era grande, tendo em conta os factos conhecidos do regresso ao México e de uma abordagem autobiográfica sobre um período da sua infância.

Se as expectativas foram largamente superadas pelo visionamento do filme e pela atribuição do galardão de Veneza, um outro importante elemento se verifica. É que Cuarón não se submeteu à política ‘estética’ do pequeno ecrã (do televisor, do computador ou do smartphone…!) mas realizou um filme para cinema, isto é, para a sua exibição em sala. Isso mesmo ‘obrigou’ a Netflix a permitir a exibição – embora com determinadas exigências a que não se submeteram algumas distribuidoras – num número restrito de salas, em alguns países, antes da sua passagem ao streaming. Foi o que aconteceu em Portugal numa das salas de cinema do Monumental, em Lisboa. Estaremos portanto a entrar numa nova era da produção e da distribuição cinematográfica? Só a evolução no futuro próximo dará a resposta. No entanto uma coisa se impõe ao nosso reconhecimento: o cinema, como o concebemos, nasceu para a sala de projecção e não para o pequeno ecrã.

https://youtu.be/fp_i7cnOgbQ

A qualidade cinematográfica de Roma seria (será) grandemente afectada num ecrã de dimensões reduzidas: não haverá rigor para o controle da luz (e se esse controle é importante em Roma); os tons desejados pelo realizador para o expressivo preto e branco serão abastardados; a composição da imagem (pensada para grande ecrã), e a emoção daí decorrente para o espectador, sairão traídas. Será bom não esquecer que o corrente visionamento de filmes no pequeno ecrã, sendo uma prática constante e facilitadora, não deixa por isso de ser um sucedâneo. O cinema, enquanto expressão artística, é concebido para a sala de projecção. Televisão ou computador (por maior que seja o monitor) são uma outra realidade. A educação para os media também passará por este reconhecimento e a experiência concreta dos meios, mergulhada em confusão, não ajudará ao rigor dos conceitos.

O cinema, enquanto expressão artística, é concebido para a sala de projecção. Televisão ou computador (por maior que seja o monitor) são uma outra realidade. A educação para os media também passará por este reconhecimento e a experiência concreta dos meios, mergulhada em confusão, não ajudará ao rigor dos conceitos.

Um dos elementos importantes no conjunto que constrói a linguagem fílmica é o ponto de vista. É claro que o ponto de vista de partida é aquele que o realizador e o argumentista (no caso de Roma, a mesma pessoa) têm quando, ao escreverem o  argumento, tratam um determinado tema ou assunto. Mas, no caso do cinema ou da televisão, esse ponto de vista de partida é organizado já em função da expressão fílmica que se traduz de imediato na organização de um guião de trabalho onde estão previstas as hipóteses de ‘tradução’ concreta para a linguagem que a câmara (esse olho, como expressou Dziga Vertov) determina: a dimensão dos planos, os enquadramentos, a composição de cada um dos planos dentro das sequências e o posicionamento e movimentos da própria câmara, tal como o ritmo da montagem.

Ora o que é muito interessante e interpelador, em Roma, é que Cuarón constrói uma narrativa que parte de um ponto de vista pessoal ao apelar à sua memória de infância. Contudo, essa apresentação, é matizada pela leitura que o adulto Cuarón faz, em 2018, dessa longínqua experiência de 1970. Por outro lado (e este elemento é deveras importante para a abordagem) o realizador torna-nos, de certa forma, testemunhas do que aconteceu, através da organização dos elementos fílmicos que utiliza: desde logo o distanciamento que propicia a forma como a câmara se vai movimentando ao longo da narrativa, para seguir as pessoas e acontecimentos e a forma como os planos são construídos, sobretudo utilizando o plano geral. Tudo concorrendo para que nós, espectadores, estejamos lá, na Cidade do México de 1970, tão minuciosamente reconstruída, e no seio daquela casa (também ela fabulosamente restituída nos adereços autênticos daquela família, da família de Cuarón, com os seus intrincados problemas.

Mas, como se tal não fosse já tão complexo e rico, há o outro elemento entrosado na  família que, sendo exagerado pensar que lhe define o rumo, será justo dizer que condiciona o existir dos acontecimentos que, nela, a todos envolve. Essa personagem-chave é a criada/ama índia, Cleo. E Cleo é duplamente importante: enquanto apoio da família e enquanto pessoa índia presente numa sociedade onde a sua inserção é dificultada pela sua especificidade étnica, sociedade mexicana que atravessa fortes problemas sociais e políticos, como Cuarón não deixa de evocar subtilmente, em pano de fundo (sempre referenciado à sua família), na sequência do massacre perpetrado pelas autoridades policiais, nas ruas da Cidade do México, em 1970.

É nesse pano de fundo que se olha para essa família de onde o pai está frequentemente ausente, tornando-se essa ausência, em dado momento, definitiva. E, apesar desse facto crucial, a família encontrará, no entanto, âncoras para continuar a viver. E uma delas, malgrado todos os problemas de classe que se vislumbram, será justamente Cleo, envolvida, ela própria, em traumatizante problema pessoal que toca também o conjunto familiar.

Uma última palavra para sublinhar a importância envolvente da qualidade da banda sonora, a exigir aparato técnico especial de restituição em sala. O que, surpreendentemente, terá dimensão menor em qualquer plataforma de recepção em streaming…

Roma está pré-seleccionado para a atribuição de Melhor Filme Estrangeiro, nos Oscars da Academia, em 2019.

Ficha técnica

ROMA

(T.O.) Roma –  México/EUA, 2018

Drama biográfico |  2H15 minutos – M/14 anos                               

Realização: Alfonso Cuarón

Música: Lyn Fainchtein

Argumento: A. Cuarón

Fotografia a p&b: A . Cuarón

Actores Principais: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Diego Cortina Autrey, Carlos Peralta, Marco Graf, Daniela Demesa, Nancy Garcia Garcia e Verónica Garcia.

Em exibição – em Lisboa: Atlântida Cine, Cinema Ideal, Medeia Monumental / No Porto: Cinema Trindade

 

NB- Nos últimos dias de dezembro de 2018 a comunicação social reportou a informação de Medeia Filmes, do produtor e exibidor Paulo Branco, vir a encerrar, no próximo mês de Fevereiro, a actividade cinematográfica no Monumental, em Lisboa. A razão aduzida pela empresa é, tristemente, a mesma que leva ao encerramento de tantas e tantas salas (só Medeia já fechou anteriormente, em Lisboa, três espaços): a inviabilidade comercial de exploração, face ao número diminuto de espectadores. É portanto uma triste noticia pois que Medeia Filmes é um dos poucos esteios, em Portugal, que propicia a distribuição de cinema de qualidade, de muito do cinema europeu, bem como cinematografias asiáticas, sul-americanas ou africanas. Fica, por isto, a exibição de cinema em Portugal ainda mais pobre. Resta a pequena consolação, anunciada pela empresa, de que reforçará a sua actividade no cinema Nimas, sempre em Lisboa, mantendo as salas que explora no resto do país.

Os espaços de exibição cinematográfica que restam em Lisboa estão sob domínio quase absoluto da NOS e, apenas numa pequena porção, distribuída pela UCI. E todos inseridos em grandes superfícies comerciais. Para o cinema de qualidade existe apenas a pequena ilha do cinema Ideal, no Chiado, ligado à produtora e distribuidora independente Midas. A causa que leva à perda de espectadores em sala radica fundamentalmente na concorrência da passagem de filmes em televisão ou em outras plataformas, estando o DVD também em acentuada perda de terreno. Não é uma crítica, apenas uma constatação. Quando, acima, me referia à importância do visionamento de cinema em sala, pelas condições técnicas e pelas características físicas e psicológicas induzidas pela sala escura, esta é, na realidade uma triste situação. O que pensará a respeito do que, neste campo, acontece um pouco por toda a Europa, o sociólogo francês Edgar Morin, felizmente ainda vivo e activo e que, em 1956, reflectia sobre a importância, para o cinema, da matriz envolvente que é a sala escura, nessa obra fundamental  O Cinema Ou O Homem Imaginário?

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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