Colaborar no Cuidado da Casa Comum

Ponto SJ dedica esta semana à quarta Preferência Apostólica da Companhia. O que se espera da Igreja é que seja sensível aos sinais dos tempos e se deixe guiar pelo Espírito Santo para fazer frente aos grandes desafios da nossa época.

Ponto SJ dedica esta semana à quarta Preferência Apostólica da Companhia. O que se espera da Igreja é que seja sensível aos sinais dos tempos e se deixe guiar pelo Espírito Santo para fazer frente aos grandes desafios da nossa época.

Tal como na parábola, o Samaritano socorre o homem que é vítima dos bandidos (Lc 10), também a “nossa irmã, a mãe terra” (S. Francisco de Assis), moribunda, precisa de ser urgentemente cuidada. Olhando o mundo, torna-se óbvio que vivemos uma devastadora crise ambiental, com implicações profundas em toda a humanidade e nas gerações futuras, e maior incidência nos mais pobres, com menor capacidade de se proteger. Os jesuítas sentem-se chamados a trabalhar no decénio 2019-2029 quatro “Preferências Apostólicas Universais” (PAU). Este artigo pretende apresentar o enquadramento da quarta Preferência: “Colaborar no Cuidado da Casa Comum”.

O que quer dizer?

Em primeiro lugar, “colaborar”. Se as questões da justiça e da ecologia são transversais e estruturais – por isso falamos em pecados estruturais – só adotando estratégias igualmente transversais poderemos responder satisfatoriamente. Os pecados estruturais tornam-nos cúmplices beneficiados ou vítimas anónimas. É uma situação que damos por adquirido, a que nos vamos habituando, ao ponto de nos parecer que é aceitável e que está tudo bem. A busca de prazeres efémeros tornou-nos insaciáveis no consumo e cegos ao drama que se vive no mundo. “Colaborar” é pôr-se em causa, considerar inaceitável a realidade que se nos apresenta e dispor-se a transformá-la com os outros, começando pelas pessoas de boa vontade. Neste mundo plural, “colaborar” não é apenas uma estratégia possível, mas aquela que nos permite perceber que o que temos em comum é mais importante do que o que nos diferencia. Colaborar é um verbo que se tornou imperioso conjugar. A Congregação Geral (CG) 35 (2008) dedicou-lhe o decreto “A colaboração no centro da missão”. No “centro da missão” e não apenas nas margens, onde não chegamos. [A CG é o principal órgão com poder legislativo, no qual têm assento os representantes de todas as Províncias da Companhia de Jesus.]

“Colaborar” é pôr-se em causa, considerar inaceitável a realidade que se nos apresenta e dispor-se a transformá-la com os outros, começando pelas pessoas de boa vontade. Neste mundo plural, “colaborar” não é apenas uma estratégia possível, mas aquela que nos permite perceber que o que temos em comum é mais importante do que o que nos diferencia.

Em segundo lugar, “cuidado”. As Constituições da Companhia de Jesus foram redigidas por Inácio de Loiola. É significativo registar que nelas encontramos 41 ocorrências de “cuidado” e 10 ocorrências do termo latino “cura” (Concordancia Ignaciana). Nas Constituições, “cuidado/cura” aplica-se sobretudo quer à própria pessoa quer a determinado apostolado. Na atualidade, há pensadores jesuítas que utilizam termos pertencentes a campos semânticos afins de “cuidar”. A conferência de Bernard Lonergan SJ, “Healing and Creating in History” (1975), tem um título sugestivo. Com uma abordagem pascal implícita, este título conjuga dois aspetos: a cura (relativa ao passado) e a criatividade (relativa ao futuro). Esta conferência testemunha o interesse que Lonergan tinha pela Macro Economia e pela Ética Económica, na última fase da sua vida. A atitude do cuidado/cura encontra-se aqui aplicada a uma escala planetária. A CG 34 (1995) aprovou um decreto intitulado “Ecologia (recomendação ao P. Geral) ”. Fruto desse decreto-recomendação foram publicados dois relatórios: We live in a broken world. Reflections on Ecology (1999); e Healing a broken world. Task Force on Ecology (2011/2). Ambos os relatórios são da autoria do Social Justice and Ecology Secretariat. Note-se que a justiça social e a ecologia aparecem aqui conjuntamente. Por fim, a respeito do “cuidar”, o próprio Papa Francisco considera a Igreja como um “hospital de campanha” que, antes de mais, tem de se cuidar a si mesma, das suas próprias feridas interiores, para só depois se poder virar para fora.

Em terceiro lugar, “casa comum”. Em 1561, Jerónimo Nadal SJ (1507-80) utiliza a expressão: “El mundo es nuestra casa”. Tenhamos presente que estamos no início da chamada Globalização. Grande parte dos descobrimentos tiveram lugar no final do séc. XV e princípio do séc. XVI. A fundação da Companhia de Jesus (1540) coincide com esta época histórica: os primeiros missionários jesuítas eram enviados aos quatro cantos do mundo. O campo de missão da Companhia nascente é todo o mundo. O movimento de expansão militar, comercial e religioso tornou o mundo mais pequeno e inclusive equiparável a uma casa.

Em que é inspirada?

É, sobretudo, inspirada nos Exercícios Espirituais de S. Inácio de Loiola (1491-1556). [Os Exercícios Espirituais originalmente têm uma duração de 30 dias, num local apartado, longe das nossas rotinas habituais. Na prática, existem adaptações com a duração de 8 ou mesmo de 3 dias.] Os Exercícios Espirituais não são fim em si mesmo. Visam devolver-te à vida, livre de tudo o que te escraviza, de modo a que te movas pelo afeto que te liga ao Senhor (Exercícios Espirituais 21). Nessa medida, também fazes da tua vida quotidiana uma oração contínua de serviço e louvor.

É numa atitude de ação de graças e de louvor que Inácio de Loiola contempla a criação (Autobiografia 11), indo ao extremo de ver a Trindade numa simples folha de laranjeira! Inácio gozaria do dom da locuela, capacidade de escutar o canto perene das criaturas ao Criador (Diccionario de Espiritualidad Ignaciana). Tinha 31 anos quando, a cerca de dois quilómetros de Manresa (Catalunha), do alto duma ribanceira, vendo o rio Cardoner em baixo, experimenta uma iluminação. Fruto dessa iluminação entendeu muitas coisas: “tanto coisas espirituais, como coisas da fé e das letras”, isto é, passou a ter uma perspetiva integrada onde entra a experiência espiritual, as verdades da fé e as outras disciplinas estudadas no tempo. O entendimento dilatou-se-lhe, tornou-se um homem novo e passou a ver todas as coisas novas em Cristo (Autobiografia 30).

Inácio é um homem de pontes, procurando integrar diferentes perspetivas numa visão unificada da realidade. A expressão de Inácio “ver a Deus em todas as coisas” é traduzida por Nadal pela expressão “contemplação na ação”

Inácio é um homem de pontes, procurando integrar diferentes perspetivas numa visão unificada da realidade. A expressão de Inácio “ver a Deus em todas as coisas” é traduzida por Nadal pela expressão “contemplação na ação”. Tenderíamos a considerar que Deus e as criaturas se autoexcluem, e o mesmo a respeito da contemplação e da ação. De facto, contrapõem-se, mas não são contraditórios. Uma perspetiva verdadeiramente integrada e unificada situa-se nos antípodas do sincrético e eclético. Neste último caso, diluem-se os contornos, há uma perda de identidade e ocorre uma fusão. Em contrapartida, os grandes Concílios Ecuménicos da Igreja preservam as partes intervenientes na sua diversidade. Inácio diz que Deus habita e trabalha nas criaturas (minerais, vegetais, animais), e de modo especial no ser humano, fazendo de ti seu templo, sem que nada perca a própria individualidade. Nos escritos de Inácio e dos jesuítas que se lhe seguiram podemos identificar vários binómios, em que as realidades intervenientes se contrapõem sem ser contraditórias.

Veio a mostrar-se determinante para o futuro rumo da Companhia a CG 32 (1975), nomeadamente o decreto “A nossa missão hoje: o serviço da fé e a promoção da justiça”. A fé e a justiça social não só não se opõem, mas crescem em simultâneo. Está aqui implícito o mandamento do amor, nas duas vertentes do amor a Deus e ao próximo. Além do dec. 4, da CG 32, é de justiça referir um relatório da ONU, que veio a mostrar-se relevante para a perspetiva da Companhia. Trata-se da obra de referência que teve à frente a senhora G. O. Brundtland, O nosso futuro comum (1987). Esta obra integra ambiente e desenvolvimento: os problemas do ambiente e os do desenvolvimento só podem ser resolvidos se considerados conjuntamente. A primeira encíclica do Papa Francisco, Laudato Si’, Sobre o cuidado da casa comum (2015), retoma a perspetiva integrada de Brundtland, tendo o binómio ambiente e desenvolvimento dado lugar ao binómio justiça e ecologia. É de sublinhar que o subtítulo desta encíclica é retomado na íntegra pela quarta PAU, que estamos a analisar.

O que pede à Companhia e ao Mundo?

Que tenha uma perspetiva pneumatológica de um Deus que habita e trabalha na Criação/História. A presença de Deus é dinâmica – transformadora! O que se espera da Igreja é que seja sensível aos sinais dos tempos e se deixe guiar pelo Espírito Santo para fazer frente aos grandes desafios da nossa época.

Na História da Igreja procura-se perceber se esta esteve à altura dos acontecimentos vividos, oferecendo ao mundo um testemunho credível e autêntico. Por exemplo, no que se refere à abolição da escravatura, ao nazismo, à guerra fria e ameaça de uma guerra nuclear, em que medida a Igreja teve ou não uma voz/posição profética? Hoje confrontamo-nos com outras questões, nomeadamente a mudança do clima que afeta toda a população do mundo, de modo especial os mais pobres. Isto exige que os representantes da Igreja assumam uma posição clara.

Como Igreja, estamos a fazer uma caminhada de preparação rumo ao Sínodo 2023, intitulado “Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”. Que dirão as próximas gerações de cristãos a nosso respeito? Queremos escrever a História da Igreja na fidelidade ao Espírito Santo. Como cristãos queremos ser mais sensíveis ao duplo grito dos pobres e da terra (Papa Francisco), “queremos cuidar da criação com pequenas ações diárias” (Laudato Si’), queremos optar por um estilo de vida sóbrio para nos identificarmos com Cristo pobre e humilde. Queremos como Igreja empenharmo-nos no mundo, ser grão de mostarda e fermento (Mt 13), colaborando com outros na transformação do mundo em Reino.

Neste mundo plural, a Igreja é convidada a afirmar-se no espaço público, como um entre muitos interlocutores. A Igreja apresenta-se como um pequeno resto com o qual o Senhor conta para saciar as multidões a partir de cinco pães e dois peixes: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mc 6, 37). “Eis o meu servo, o enlevo da minha alma; sobre ele fiz pousar o meu espírito, para que leve a justiça às nações. Não gritará, não quebrará a cana fendida, proclamará fielmente a justiça” (Is 42).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.