Os canteiros estão preparados, o terreno está lavrado e o sistema de rega pronto a funcionar. Na horta da Quinta da Casa Velha, propriedade de 67 hectares situada em Vale Travesso, concelho de Ourém, alguns membros dos Atravessados – nome do grupo de 18 jovens que ali faz voluntariado uma vez por mês – preparam-se para plantar alho-francês, alface, curgete e couve-lombarda. “Podem começar pelas alfaces. Deixem, mais ou menos, um palmo entre cada pé”, indica Margarida Alvim, responsável pela Associação Casa Velha – Ecologia e Espiritualidade. O projeto, criado em 2012, pretende fazer da quinta “um espaço de encontro com a natureza, com os outros e com Deus” e está profundamente marcado pela espiritualidade inaciana. “Os Exercício Espirituais foram o meio para discernir o caminho que fomos fazendo.”
Na mesma área da horta, mas um pouco mais abaixo, dez Atravessados dedicam-se a cortar o canavial que, nos últimos tempos, tem dificultado a passagem de luz solar. Muitos nunca tinham trabalhado no campo, antes de conhecerem a Casa Velha. É o caso de Madalena Meneses, de 26 anos. “Vim, pela primeira vez, em 2015 e aos poucos fui percebendo que a espiritualidade está intrinsecamente ligada à ecologia, neste sentido de relação com a terra. Aqui tudo se integra, tudo faz sentido.” E acrescenta: “É muito bonito perceber que há um tempo para podar, outro para colher”. Os fins de semana mensais, em Vale Travesso, também a têm ajudado a descobrir a vida em comunidade. “Nos Atravessados há pessoas de vários pontos do país. Não nos reunimos porque somos amigos – é verdade que, com o tempo, a amizade surgiu –, mas o que nos liga verdadeiramente é a Casa Velha, a oração e este desejo de cuidar”, diz Madalena, licenciada em Estudos Gerais.
Entre o grupo que está a cortar canas está também Peter Walpole, o jesuíta irlandês que é responsável pela Ecojesuit, a rede dos jesuítas ligada à ecologia e ao desenvolvimento sustentável. “Ao vê-los aqui, tenho a certeza que apreciam as coisas simples da vida e que o que receberam da Casa Velha terá um reflexo no seu quotidiano. Será algo a partir do qual continuarão a viver”, diz o sacerdote, que vive nas Filipinas e está de passagem por Portugal.
Ao longo do fim-de-semana, e além do trabalho na terra, os Atravessados têm tempos de oração e de missão. Durante a tarde daquele sábado de Fevereiro, irão dividir-se entre um lar, em Ourém, algumas visitas à população local, o acolhimento de crianças na propriedade e algumas tarefas da Casa. João Líbano Monteiro, de 29 anos, passará a tarde na horta, a terminar a plantação da manhã. “A Casa Velha teve o condão de me reaproximar de Deus, numa altura em que andava afastado. Também me permitiu descobrir a espiritualidade inaciana”, diz o engenheiro, que frequenta a quinta há quatro anos. “Vir aqui, uma vez por mês, é uma oportunidade para estar em sintonia com Deus e com os outros. Aqui experimento um ritmo de vida mais saudável, que depois, no quotidiano, serve de pêndulo e me ajuda a perceber se estou a viver demasiado acelerado.” E esclarece: “A vertente ecológica da Casa Velha funciona de forma completamente orgânica. Não é de tipo ativista”.
Exercícios Espirituais, campos de férias e atividades com escolas
Os Atravessados são apenas um dos grupos que a Casa Velha recebe. Ao longo do ano, a propriedade da família Alvim acolhe campos de férias, Exercícios Espirituais, retiros (Rezar no Campo e Poda e Espiritualidade, por exemplo), visitas de escolas e lares. “Todos os meses, recebemos idosos que participam em atividades, seja a selecionar plantas para chá, seja a passar a tarde a cantar à volta da lareira”, conta Margarida Alvim. “Com as escolas, por exemplo, desenvolvemos um projeto que permitiu que os produtores locais começassem a abastecer a cantina do agrupamento. São pequenas mudanças, que fazem parte de uma mudança mais estrutural e que estão ligadas à conversão de cada um”, acrescenta. Num dos espaços da Casa Velha, ao qual se acede por um longo caminho rodeado de sobreiros, espécie muito comum na região, várias turmas de Lisboa plantaram árvores. “Esta semana enviei uma fotografia a um professor para que os alunos possam acompanhar o crescimento.”
Ainda que seja aberto a todos, a Quinta da Casa Velha continua a ser um espaço particular – está na família de Margarida Alvim desde 1906. Durante grande parte do século XX teve um importante papel económico e social na região – a média das propriedades no concelho de Ourém é de 1 hectare; a Casa Velha chega aos 67. “Na década de 1990, entrou declínio e começámos a sentir o desafio de cuidar. Somos parte da criação e, como tal, somos chamados a desempenhar um papel neste âmbito”, afirma. Com os anos, e com o discernimento que foi fazendo através dos Exercícios Espirituais, Margarida foi percebendo que a sua vida passava pela Casa. “Há 10 anos, começámos a descobrir este sítio como espaço de desenvolvimento humano, pessoal e comunitário”, diz Margarida, contando que em 2009 trocou Lisboa por Vale Travesso. “Costumo dizer que a Casa Velha é um grande Exercício Espiritual.”
O espaço começou a acolher grupos de forma regular, em 2010, dois anos antes da constituição da Associação Casa Velha – Ecologia e Espiritualidade, que tem na direção um representante da Companhia de Jesus e um representante das Escravas do Sagrado Coração de Jesus. Com o aumento da procura, a quinta foi sendo também adaptada e reconstruída. “A primeira obra passou pela transformação da garagem em Capela do Bom Pastor”, recorda. Seguiram-se outras adaptações: as casas da lenha deram origem a casas de banho; o antigo palheiro tornou-se um albergue. Em 2015, abriram um agroturismo, situado nos antigos currais. “Havia uma preocupação com a sustentabilidade e candidatamo-nos a fundos europeus para realizar as obras.”
Nesse ano, com a publicação da encíclica Laudato si, surgiria a “confirmação da missão da Casa Velha”. O documento de 2015,sobre o cuidado da casa comum, cimentaria a ligação entre ecologia e espiritualidade, que anos antes dava nome ao projecto. “O Papa Francisco apresenta a questão ambiental como uma questão social de fundo. Cuidar do território é cuidar das pessoas”, considera. “Depois disso, procuraram-nos para que, a partir da prática, falássemos da encíclica em conferências e mesas redondas. Foi um momento muito especial”, diz Margarida Alvim.
Além de momentos de encontro com Deus e com os outros, a Casa Velha acaba também por fomentar a descoberta de dons e talentos. Madalena Meneses diz que foi ali que descobriu o gosto pela fotografia analógica, à qual se tem dedicado cada vez mais – quer investir profissionalmente na área. “Aqui, sinto-me tão encontrada e cuidada que quero levar isso aos outros.”
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.