Assumir a vergonha, colaborar com a Justiça

O P. Samuel Beirão vive atualmente nos EUA. Foi lá que recebeu a notícia do relatório do Grande Júri da Pensilvânia que denunciava o abuso sexual praticado por trezentos padres. Partindo daí, ajuda-nos a compreender e enquadrar a situação.

O P. Samuel Beirão vive atualmente nos EUA. Foi lá que recebeu a notícia do relatório do Grande Júri da Pensilvânia que denunciava o abuso sexual praticado por trezentos padres. Partindo daí, ajuda-nos a compreender e enquadrar a situação.

Fui ordenado padre em Portugal há pouco mais de um mês. Pouco tempo depois, voltei para os Estados Unidos, onde vivo há um ano. Sempre vi o sacerdócio como uma forma de vida ao serviço dos outros, inserido numa comunidade de homens e mulheres, em que cada um tem o seu lugar e a sua maneira única de pôr os seus talentos e dons em comum. Além disso, tive a sorte de, ao longo dos mais de dez anos de formação na Companhia de Jesus, conhecer muitos homens que me serviram de exemplo no seguimento de Jesus e serviço à sua Igreja e ao Mundo através deste ministério. Acredito numa Igreja em que todos têm lugar. Acredito num Deus que ama incondicionalmente cada pessoa e que acolhe cada um na sua singularidade. Por isso mesmo, quando no dia 14 de agosto, o Grand Jury[1] da Pensilvânia, publicou um relatório em que trezentos padres católicos são acusados de abusar sexualmente de mais de mil vítimas, não pude sentir senão repulsa, vergonha e tristeza por haver quem use o serviço que lhe é confiado para abusar dos mais frágeis e pequeninos.

Por isso mesmo, quando no dia 14 de agosto, o Grand Jury da Pensilvânia, publicou um relatório em que trezentos padres católicos são acusados de abusar sexualmente de mais de mil vítimas, não pude sentir senão repulsa, vergonha e tristeza por haver quem use o serviço que lhe é confiado para abusar dos mais frágeis e pequeninos.

P. Samuel Beirão, sj

Já no passado mês de maio, os bispos chilenos se tinham reunido com o Papa Francisco, em Roma, e apresentado a sua resignação devido aos casos de abuso sexual cometidos por clérigos no seu país. Em 2010, o Papa Bento XVI enviou um pedido de desculpa formal às vítimas de abusos sexuais na Irlanda e estabeleceu uma equipa de investigação para apurar responsabilidades. E em 2002, o jornal The Boston Globe publicou uma reportagem em que denunciava não só os abusos sexuais por parte de membros do clero, mas também a cumplicidade das autoridades eclesiásticas ao esconder os crimes das autoridades judiciais. Depois da investigação do jornal, muitas vítimas de abusos sexuais vieram a público denunciar os crimes por parte de membros do clero e de funcionários de instituições católicas.

Numa declaração oficial do Vaticano acerca do relatório do Grand Jury da Pensilvânia, pode ler-se que o Papa Francisco está do lado das vítimas e que esta situação é “criminal e moralmente repreensível”. Aliás, o Papa Francisco, assim como o seu antecessor Bento XVI, sempre se mostraram do lado das vítimas. Por isso, a declaração oficial de dia 16 de agosto começa por dizer que só há duas palavras que descrevem o que a Igreja sente: “vergonha e tristeza”. O abuso sexual de qualquer pessoa, mas especialmente de crianças e adultos vulneráveis, por parte de membros da Igreja Católica é uma vergonha para todos os que professam a fé católica. Assim, qualquer cristão deve denunciar os casos que conheça, sentir-se humilhado pelos actos cometidos e estar do lado das vítimas. Cabe ainda a qualquer cristão rezar com misericórdia pelos abusadores e todos os que, de algum modo, foram cúmplices das suas acções criminosas, para que assumam a sua responsabilidade ante a justiça e as vítimas.

Numa declaração oficial do Vaticano acerca do relatório do Grand Jury da Pensilvânia, pode ler-se que o Papa Francisco está do lado das vítimas e que esta situação é “criminal e moralmente repreensível”.

 

1.      A tentação de encobrir

Parece que, durante muitos anos, a Igreja Católica em vários pontos do mundo soube que casos de abuso sexual por parte de alguns dos seus membros ocorriam nas suas dioceses. E durante muitos anos a hierarquia preferiu calar, esconder, transferir o abusador para outro lugar, a fim de que não se conhecesse a situação. Isto custou a muitas vítimas e às suas famílias anos de silêncio e sofrimento, por não ver reposta a verdade à tragédia por que passaram. Em muitos casos, a Igreja preferiu manter a sua reputação em vez de pôr em prática a promessa de justiça e paz anunciada no Evangelho. Mas como disse Jesus aos seus discípulos, há que guardar-se da hipocrisia, que é como a levedura, pois não há nada encoberto que não se venha a descobrir (Lucas 12, 1-2).

A boa reputação da Igreja não vem de querer aparentar a imagem de uma instituição imaculada. A boa reputação da Igreja vem da sua origem: a Igreja foi fundada por Cristo e é sustentada pelo seu Espírito; ao longo de dois mil anos de história, milhões e milhões de homens e mulheres escolheram fazer o bem e viver as suas vidas segundo o modelo e exemplo de Jesus; e ao longo da sua história conheceram-se demasiados casos de gente cujo pecado conduziu ao mal. Jesus diz claramente que o pecado é o que realmente mata, isto é, o que nos priva de viver a vida em pleno, e não podemos deixar de fazer ouvir a sua voz, hoje: só a verdade nos libertará (João 8, 32).

A boa reputação da Igreja não vem de querer aparentar a imagem de uma instituição imaculada. A boa reputação da Igreja vem da sua origem: a Igreja foi fundada por Cristo e é sustentada pelo seu Espírito; ao longo de dois mil anos de história, milhões e milhões de homens e mulheres escolheram fazer o bem e viver as suas vidas segundo o modelo e exemplo de Jesus.

P. Samuel Beirão, sj

2.      Distinguir o pecado do crime

Um dos erros que talvez se cometa dentro da Igreja é confundir pecado com crime. O pecado é toda a acção ou omissão grave levada a cabo livremente, que rompe a relação com Deus, com os outros e consigo próprio. Contudo, nem tudo o que cabe nesta definição é um crime a nível civil. Sobre o pecado, chegará o dia em que serão feitas as contas diante de Deus. Quanto ao abuso sexual, é um crime e, por isso mesmo, deve ser investigado e julgado como tal, pelas autoridades competentes, nos nossos dias. A hierarquia da Igreja não só tem o dever moral de colaborar com as autoridades judiciais para levar a cabo um julgamento justo sobre os casos conhecidos, mas também deve encaminhar para sede própria os casos de que venha a tomar conhecimento. Aqui, sim, pode a Igreja jogar a sua reputação: por um lado, estando do lado das vítimas e das suas famílias, cooperando nos processos judiciais, prestando apoio psicológico e espiritual, recuperando a credibilidade perdida; por outro, não esquecendo a misericórdia para com todos, incluindo os abusadores, sem negligenciar a verdade. A Igreja deve ser, no mundo, um sinal da presença de Deus: Deus criador, Deus que não sabe senão amar cada um como é, Deus que se manifesta na vida das comunidades em gestos concretos de acolhimento.

Aqui, sim, pode a Igreja jogar a sua reputação: por um lado, estando do lado das vítimas e das suas famílias, cooperando nos processos judiciais, prestando apoio psicológico e espiritual, recuperando a credibilidade perdida; por outro, não esquecendo a misericórdia para com todos, incluindo os abusadores, sem negligenciar a verdade.

P. Samuel Beirão, sj

3.      Marcas que ficam para sempre: o que podemos fazer?

Os padres envolvidos nestes escândalos deixaram marcas permanentes nas vidas das suas vítimas. Em vez de usarem o seu ministério para servir os que vinham ao seu encontro, abusaram da sua autoridade, quebrando a confiança, a esperança e, eventualmente, a capacidade destas pessoas de crer em Deus e na Igreja ou, até, a sua capacidade de amar.

Segundo várias situações conhecidas, o escândalo não foi só o abuso de crianças e pessoas vulneráveis, mas a rede em torno desses abusos, uma estrutura de pecado em que uns eram coniventes com outros, cúmplices pela sua inacção e silêncio ou, até, por preferir esconder e procurar soluções que, em vez de levarem à justiça e à verdade, preferiam proteger os abusadores de eventuais consequências legais.

O número de abusadores é demasiado significativo e grave, mas não esconde os inumeráveis católicos que desejam viver a sua vida de uma forma séria. A Igreja conta com muitos homens e mulheres que abraçam uma forma de vida célibe e casta, psicologicamente equilibrados e espiritualmente encontrados, ao mesmo tempo conscientes dos desafios desse estilo de vida e profundamente gratos pela alegria de poder assim viver. No entanto, que um só membro da Igreja moleste alguém é razão suficiente para que toda a Igreja se envergonhe e se arrependa.

Estar ao lado das vítimas não é só uma palavra bonita. A Igreja é um corpo constituído por pessoas, é a comunidade dos que seguem Jesus e procuram viver já aqui aquilo que esperam viver, um dia, em plenitude: um mundo onde não há sofrimento nem dor, nem violência ou injustiça. Estar ao lado das vítimas implica agir, ser transparente, não ter medo da verdade, sentir na carne a humilhação de fazer parte de um corpo que, em casos particulares, se desvia do caminho do seguimento de Cristo. O bem é a essência da nossa fé e da nossa esperança em Jesus Cristo. Se seremos conhecidos pelos nossos frutos (Mt 7, 20), então que a fé de muitos suplante a descrença naqueles que não foram fiéis ao seu compromisso de cuidar dos mais pequeninos, que o sentimento de vergonha de muitos denuncie o escândalo que magoou a tantos. Não é tempo de jogar à defesa. No seu editorial de dia 17 de agosto, a America Magazine propõe que a Igreja responda aos abusos sexuais de várias maneiras: um acto público de arrependimento e reparação, jejuns e penitências por parte do clero e religiosos, escutar as vítimas na primeira pessoa. Também em muitas Eucaristias de Domingo por todo o país, muitos sacerdotes e leigos pediram desculpa às comunidades em nome da Igreja e agradeceram a presença dos fiéis, animando-os na fé. Isto não é uma lista exaustiva do que pode ser feito e deve ser lido no contexto actual dos Estados Unidos, mas esta série de sugestões levam-nos à pergunta sobre o que podemos fazer diante da nossa realidade. Afinal, estes casos não afetam só a sociedade em que se inserem, mas toda a Igreja e, por isso mesmo, não nos são distantes.

Estar ao lado das vítimas implica agir, ser transparente, não ter medo da verdade, sentir na carne a humilhação de fazer parte de um corpo que, em casos particulares, se desvia do caminho do seguimento de Cristo.

P. Samuel Beirão, sj

Acredito numa Igreja que caminha ao lado dos pobres, dos frágeis, dos marginalizados, dos que sofrem. Uma Igreja capaz de compadecer-se com os outros e levantar a voz contra as injustiças deste mundo. Se alguém abusa da confiança, da liberdade e da vida de outro, não está a responder com a sua vida ao ministério de serviço que lhe foi confiado. Cabe aos que tentamos viver a nossa fé de uma forma séria dar os passos necessários para corrigir alguma situação de injustiça que eventualmente conheçamos. Nada pode fazer esquecer que houve pequeninos e vulneráveis filhos amados de Deus, nossos irmãos, que foram magoados e escandalizados. Podemos não ter culpa, mas devemos sentir-nos responsáveis por eles, porque também somos Igreja.

Acredito numa Igreja que caminha ao lado dos pobres, dos frágeis, dos marginalizados, dos que sofrem. Uma Igreja capaz de compadecer-se com os outros e levantar a voz contra as injustiças deste mundo

P. Samuel Beirão, sj

Mais que nunca, os que sentimos tristeza, vergonha e repulsa temos de manter-nos firmes na nossa fé e anunciar a justiça e a verdade do Evangelho. O Senhor prometeu-nos que os opróbrios e humilhações para os que O seguem, por mais que nos pesem, não têm a última palavra (Marcos 10, 30). É tempo de um exame de consciência pessoal e comunitário, de repararmos o mal com o bem, de chorar com os que choram e desejar mais que nunca a justiça e a verdade que levam à paz.

[1] Um Grand Jury é um órgão legal próprio do sistema judicial norte-americano composto por cidadãos, que tem como função investigar potenciais actos criminais e determinar se deve ser aberta alguma acção judicial a partir dos resultados dessa investigação.

Imagem de capa – Catedral Católica da Pensilvânia –  Tupungato/Shutterstock

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.