1. O caminho
Quando me convidaram a escrever o presente texto, decidi fazê-lo na primeira pessoa, em nome da eficácia do testemunho (o que me foi pedido), mesmo apesar dos riscos de exposição pessoal. Aceitei este desafio porque acredito que a mudança de atitudes perante o problema do cuidado de crianças e pessoas vulneráveis passa por uma transformação individual, que, no conjunto da sociedade, poderá fazer a diferença. Fica então o testemunho da minha história com este tema.
Inesperadamente, no ano de 2013, fui confrontado com o problema dos abusos de menores no desempenho das minhas funções de dirigente nacional de uma associação de escuteiros (CNE), em que era também responsável pela área da comunicação. Sendo uma associação com dezenas de milhares de membros, só por alguma exceção estatística seria possível que esta não fosse afetada por incidentes desse teor.
O confronto com a questão dos abusos de menores, nomeadamente no contexto da Igreja Católica e por parte de sacerdotes ou leigos, foi para mim chocante (para quem não é?) e, mesmo, aterrador. Colocava tudo em causa: valores, ética, credibilidade, … tudo, até a fé! O duplo crime, abusos e encobrimentos, torna ainda mais grave, incompreensível e hediondo esse tipo de comportamentos. Apesar do muito que se tem escrito sobre o assunto, não há palavras suficientes e adequadas para descrever o impacto nas vítimas, a quebra de confiança na Mãe Igreja e nos seus ministros e tudo o que de mal os abusos provocam.
Confesso que, nessa fase, me senti totalmente impreparado para lidar com o tema, com os problemas e com as solicitações daí decorrentes. Sendo um assunto quase tabu à época, não houve qualquer gesto de transmissão de informação da parte de antecessores, as oportunidades de formação sobre o tema eram inexistentes, quem sabia de factos calava-se ou negava-os. Confrontado com uma intensa pressão dos meios de comunicação social tive de procurar informação, experiência e conselho onde os mesmos pudessem existir. Fiz assim um percurso de autoaprendizagem e pude criar algum substrato para dar resposta às solicitações externas e internas, tomar decisões e medidas adequadas a cada situação. Durante os anos seguintes, interagimos com pais, autoridades, media, opinião pública, responsáveis internos, responsáveis da Igreja, do Estado, de organizações similares. Trabalhámos na motivação de adultos para a necessidade e urgência de uma resposta estruturada e sistemática à questão, iniciámos uma transformação de mentalidades com a definição e implementação de políticas de segurança e prevenção, criámos procedimentos e manuais de boas-práticas, demos formação a milhares de pessoas, treinámos procedimentos de comunicação interna e externa, entre muitas outras coisas. Foram anos de um caminho pessoal e coletivo trabalhoso, duro e difícil, muitas vezes incompreendido, e até de confronto com alguns. Muitas vezes senti-me “à frente do tempo”, com todas as dificuldades que isso significa. Mas também foi muito recompensador e gratificante por tudo o que aprendi, pelo conjunto de pessoas que se foi preparando para esta causa e pelos resultados alcançados.
Já “assumimos que não soubemos estar onde deveríamos estar, que não agimos a tempo para reconhecer a dimensão e a gravidade do dano” diz o Papa Francisco.
É neste contexto que, em agosto de 2018, foi publicada a “Carta do Papa Francisco ao Povo de Deus”, uma interpelação direta a todos os membros da comunidade católica, coletiva e individualmente, para assumirem também como sua a resolução do problema dos abusos. A carta diz tudo sobre a necessidade (ou mesmo obrigação!) de um empenho de todos nesse caminho, pelo que recomendo fortemente a sua leitura e dispenso-me de citar ou resumir aqui o seu conteúdo.
Nesse verão, já numa fase com menos responsabilidades nacionais, perante este apelo incontornável e conjuntamente com o P. Luís Marinho (atual Assistente Nacional do CNE), decidimos dar resposta ao apelo do Papa Francisco e envolver-nos pessoalmente e a título individual, colocando ao serviço desta causa a nossa experiência, conhecimento, rede de contactos e tempo disponível. Inicialmente, criámos um pequeno grupo de reflexão e partilha, com amigos e conhecidos de várias origens e organizações, todos com algum passado que se cruzou com o tema. Fizemos um percurso de escuta, pesquisa, partilha, aprendizagem e reflexão. Convidámos múltiplas personalidades de quadrantes distintos, todas com alguma ligação ao tema que nos move: questionámos e escutámos com enorme interesse. Na medida das nossas possibilidades, promovemos iniciativas de divulgação e formação, fizemos eco de toda a informação relevante e incentivámos quem mostrava interesse, apoiando, apontando pistas, disponibilizando formação ou intervenções em iniciativas de sensibilização.
Facilmente concluímos que “A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos”, pelo que seria necessário criar condições para que propostas de trabalho tivessem mais visibilidade, credibilidade, escala e capacidade de resposta. É neste contexto que surgiu a oportunidade de colaborarmos no Projeto CUIDAR, promovido pela Universidade Católica Portuguesa e financiado pela Fundação Porticus, que apoiámos e promovemos desde o primeiro momento. Participámos em muitas das inúmeras ações promovidas pelo CUIDAR, podendo desde já concluir que este projeto se afirma como uma das poucas ofertas de apoio, consultoria e formação na área do safeguarding em Portugal, disponível para todo o tipo de instituições e organizações da Igreja ou da sociedade em geral. O trabalho já feito mostra bem, só por si, o potencial do projeto para o futuro.
Agradeço muito ao CNE, ao grupo de amigos que se foram envolvendo e à equipa Cuidar o quanto me ensinaram e proporcionaram!
Acredito que, em breve, a Igreja Católica poderá ser uma das instituições mais escrutinadas e seguras da sociedade, podendo ser exemplo para muitas outras áreas e organizações no que ao tema da prevenção de abusos sobre crianças e pessoas vulneráveis diz respeito. Apesar de todas as dificuldades bem conhecidas, o esforço que tem sido feito, concretizado através de inúmeras iniciativas e medidas de fundo, é irreversível, imparável, exemplar, eficaz e gerador de condições para o restabelecimento da confiança de todas as pessoas, fiéis católicos ou não, na Mãe Igreja.
Já “assumimos que não soubemos estar onde deveríamos estar, que não agimos a tempo para reconhecer a dimensão e a gravidade do dano” diz o Papa Francisco. Estamos num tempo em que já se questiona a responsabilidade de cada fiel leigo (e até de cada homem ou mulher da nossa sociedade) pela passividade (omissão) de, sabendo de situações concretas, nada termos feito para que o problema dos abusos não chegasse onde chegou (p.ex. ver Daniel Oliveira, in Expresso de 12-08-2022). Não é tarde de mais para fazermos alguma coisa! É cada vez mais evidente que, sem o esforço individual de todos, crentes ou não crentes, não será possível a desejada transformação.
Por ocasião do quarto aniversário da “Carta do Papa Francisco ao Povo de Deus”, o seu apelo ao envolvimento ativo de “todos os membros do Povo de Deus” está mais atual que nunca, pelo que a sua (re)leitura e consequente envolvimento pessoal do leitor deste texto no contributo para a purificação e transformação da Igreja Católica é um desígnio urgente e indispensável!
A maioria das pessoas não conhece o tema em profundidade, apenas os títulos das notícias que vão saindo. Sem compreendermos o problema, as suas causas e consequências, não é possível mudarmos as mentalidades.
2. E agora?
Se porventura consegui convencer o leitor deste artigo a não ficar indiferente à “Carta do Papa Francisco ao Povo de Deus”, é natural que agora se questione: E agora? Que fazer concretamente?
Não tenho a pretensão de ter uma resposta, mas acredito que é necessário algum pragmatismo. Deixo, assim, algumas pistas de reflexão que fui colecionando ao longo do caminho (que está longe de terminar, pelo que se vai vendo na informação que é pública!).
No decorrer do percurso que referi antes, encontrei muitas dificuldades e desafios. Desses, identifico alguns que me parecem úteis para o propósito deste texto:
1. Grande dificuldade em motivar cada pessoa concreta para o problema dos abusos
Encontrei de tudo: uns acham que o problema não é da sua esfera nem acontece no seu mundo; outros acham que é um problema da Igreja (seja para os mais afastados , seja para quem lhe pertence, criando distanciamento!); para alguns é um problema anglo-saxónico; para outros é um ataque premeditado e planeado dos órgãos de comunicação social para destruir a Igreja e/ou as Jornadas Mundiais da Juventude em Lisboa; para outros é algo que os deixa inertes; outros há que evitam o tema por não suportar tal ideia, as descrições concretas ou mesmo não quererem mais problemas na sua vida, entre muitas outras opiniões. Mas também há quem não aguente confrontar-se com o tema e sinta (e o demonstre fortemente) algum descontrolo ou reação emocional (quiçá por associar a alguma experiência anterior) e, por isso, não querer falar ou envolver-se em tal assunto. E, claro, haverá também muita gente disponível para ouvir e se deixar motivar, talvez a maioria, felizmente. Tudo é compreensível e pode ser mais ou menos trabalhado. Mas sem falar no assunto e procurar compreendê-lo, é difícil transformar…
2. Falta de experiência e conhecimento
A maioria das pessoas não conhece o tema em profundidade, apenas os títulos das notícias que vão saindo. Sem compreendermos o problema, as suas causas e consequências, não é possível mudarmos as mentalidades. Em todas as vertentes de trabalho é difícil encontrar quem tenha experiência e conhecimento razoáveis para lidar com casos concretos, com a prevenção ou até mesmo com a motivação para o tema. São raros aqueles com quem se pode aprender e aproveitar da sua experiência. Pode também ser um problema quando alguém se convence de que tudo sabe, mas, na prática, as suas iniciativas têm resultados negativos. A boa notícia é que uma ação de sensibilização simples pode ser suficiente para fazer com que todos “remem para o mesmo lado”! Mas isso levanta mais um problema: como chegar a todos, sabendo-se que “todos” podem ser milhões de pessoas?
3. Eficácia e qualidade da formação
Por um lado, é necessário chegar a muitas pessoas. Por outro, é necessário que a formação que venha a ser dada, mesmo ao nível da sensibilização, tenha real impacto e interfira com a necessária mudança de mentalidade e transmissão de conhecimentos. E é fundamental que os conteúdos sejam criteriosos e fundamentados e sejam transmitidos com qualidade. Por vezes parece que a formação dada é inócua, outras que “sabe a pouco”. É difícil acertar na “dose certa”, estando isso provavelmente dependente em larga medida dos recetores.
4. Notícias permanentes nos media
Os órgãos de comunicação social fazem o seu trabalho, que, numa boa parte dos casos, considero útil ao processo de resolução do problema dos abusos na Igreja. E fazem-no de forma profissional e ética. Mas é preciso fazer notar que a maioria das notícias publicadas são sobre factos já conhecidos e publicitados, apenas sendo de novo comentados ou criticados devido à revelação de dados complementares, à luz de novos critérios e de novos tempos. Não desvalorizo isso e, parece-me, a situação vai continuar a evoluir (agravar, dirão alguns) à medida que mais verdades e testemunhos se forem revelando sobre esses casos. Sempre no sentido da verdade.
5. “Nunca mais passa este ataque que impede a Igreja de se dedicar ao importante, pregar o Evangelho”
“Quantas vezes o fizestes a um destes meus irmãos mais pequenos, a mim o fizestes” (Mt, 25,40): se mais motivos não houvesse, eis um dos principais para se fazer a necessária transformação. E só isso já será viver o Evangelho! Mas o que está em jogo é também a credibilidade de o pregar: sem se fazer a referida purificação, como será possível anunciar Cristo ignorando ou deixando para trás as vítimas e toda a dor causada?
“Quantas vezes o fizestes a um destes meus irmãos mais pequenos, a mim o fizestes” (Mt, 25,40): se mais motivos não houvesse, eis um dos principais para se fazer a necessária transformação.
Como pistas de trabalho, deixo os seguintes tópicos:
1. Vítimas
São o centro de tudo! Do trabalho, da atenção, da reparação do mal já feito. Parece-me que isso é um dos poucos aspetos consensuais no tema e, por isso, menos discutido neste e em muitos textos. Como há quem conte as palavras dedicadas às vítimas e tire daí conclusões sobre a importância das mesmas neste processo, fica esta dupla nota. Mas relevo a importância primordial do trabalho nesta área, tão necessário.
2. Formação
Seja apenas ao nível da sensibilização (generalizada) ou a um nível mais aprofundado (para quem se queira envolver mais), a formação é incontornável e é a melhor forma de chegar a todos, mesmo aos mais relutantes, que nunca mexerão uma palha nessa direção. O desafio maior será a quantidade de pessoas a quem chegar com essas iniciativas, procurando resolver o desafio da escala. O e-learning pode ajudar, mas perde-se o contacto direto e a possibilidade de adaptar a mensagem e a sua intensidade a cada formando, garantindo que a mensagem é apreendida. E face ao exposto acima, isso é fundamental!
3. Comunicação
Há muito a melhorar nesta área e em todos os sentidos: da Igreja para o mundo, com cada pessoa individualmente, com os media, … Muito haveria para dizer mas penso que se pode resumir no seguinte: verdade, transparência, tornar o passado cristalino, ação concreta na prevenção e reação.
4. Chegar às bases
É nas bases que tudo acontece: paróquias, movimentos e grupos, escolas e outros similares. Apesar do intenso debate e publicitação do tema, contam-se pelos dedos os casos em que, efetivamente, se pode dizer que já há uma implementação de sistemas de prevenção ou, pelo menos, formação/sensibilização, regras, indicações de boas práticas, códigos de conduta ou outras medidas avulsas mas concretas. Mesmo a níveis mais altos, há ainda uma grande diferença entre regras impostas e mudança de mentalidades ou prática corrente. Note-se que este trabalho é colossal e o que mais impacto pode ter.
5. Transferência de boas práticas e experiência para outras instituições
Como sabemos, as organizações religiosas e grupos ou instituições satélite são um dos ambientes onde se verificam abusos. Mas outros contextos como o familiar, desportivo, escolar são tão ou mais propícios à ocorrência de casos como o primeiro. Talvez menos escandalosos, mas igualmente (ou mais!) chocantes e urgentes. Já se compreendeu que a Igreja não vai poder falar disso antes de “arrumar a sua própria casa”, caso contrário isso é percecionado como desvalorização do problema interno e tática para desviar as atenções. E talvez seja verdade… Em todo o caso o avanço que a Igreja leva no seu processo interno e a experiência que acumulou e vai ainda somar serão de enorme importância para generalizar esta luta a todas as áreas da sociedade. E isso pode ser visto também como uma obrigação da Igreja em geral e de cada cristão individualmente.
Parece então claro que “a seara é grande”, pelo que haverá trabalho para todos os que se queiram envolver, mesmo que nas tarefas mais simples. Falta pôr mãos à obra e dar resposta ao apelo da “Carta do Papa Francisco ao Povo de Deus”. Depende da iniciativa de cada um de nós envolver-se ao seu nível e fazer mover este desígnio.
Contactos:
O Serviço de Escuta é um espaço seguro destinado a acolher, escutar e apoiar pessoas que possam ter sido vítimas de abusos sexuais nas instituições da Companhia de Jesus. Para contactar o Serviço de Escuta pode escrever para [email protected] ou para Estrada da Torre, 26, 1750-296 Lisboa, ou ligar para o telefone 217 543 085, de segunda a sexta-feira, entre as 9h30 e as 18h. Este espaço é da responsabilidade dos Jesuítas em Portugal.
A Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa – recebe o testemunho de todas as pessoas adultas que possam ter sido vítimas de tais atos enquanto crianças até aos 18 anos de idade através dos contactos 91 711 00 00, [email protected] ou preenchendo o inquérito online em darvozaosilencio.org
Fotografia – Francisco Gonzalez – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.