A secularização do coração

Parte da cultura que nos configura e que nós ajudamos a moldar seca o coração, “seculariza-o”. De que modo? Desvaloriza a pergunta pelo sentido da vida, ilude os nossos limites, faz-nos acreditar que cada um de nós é uma mera autocriação.

Parte da cultura que nos configura e que nós ajudamos a moldar seca o coração, “seculariza-o”. De que modo? Desvaloriza a pergunta pelo sentido da vida, ilude os nossos limites, faz-nos acreditar que cada um de nós é uma mera autocriação.

A palavra secularização parece assustar-nos. E talvez haja boas razões para isso quando, indo mais além de uma saudável autonomia das realidades sociais, se pretende privatizar a experiência da fé procurando evitar a sua presença num espaço público plural. A secularização tem uma dimensão positiva quando implica propor a fé de um modo convicto mas também cheio de humildade, aberto  à pluralidade e à diferença, numa atitude de profundo respeito pelo outro na sua dignidade e liberdade.

A religião é muitas vezes identificada com a dimensão institucional da fé, com normas e preceitos. Há uma parte de verdade nesta identificação, mas se ficarmos por aí, algo de fundamental nos escapa. No começo da aventura religiosa das mais diversas tradições está sempre uma experiência. Uma experiência na qual alguém se experimenta visitado, ultrapassado e se interroga pela origem do mundo e de si mesmo. Daqui pode nascer o espanto, a gratidão e uma consciência mais clara da finitude diante de uma imensidão que nos precede  e se percebe sem fim.

As questões associadas a esta experiência nem sempre são identificadas enquanto questões religiosas, mas trazem com elas uma enorme familiaridade com essa experiência original. Quando nos confrontamos com os nossos limites, com a incapacidade de curar alguém que amamos, quando (mesmo sofrendo) experimentamos o desejo de nos transcendermos no amor, quando aprofundamos a consciência da vida como uma dádiva imerecida, quando percebemos que há lugares que não conseguimos alcançar, que não podemos tudo o que queríamos ou, ainda,  quando oferecemos perdão a quem nos traiu. Em todos estes momentos as cordas da vida são tocadas por questões intimamente ligadas à experiência religiosa, ao modo como nos ligamos à realidade, aos outros e a Deus, por questões intimamente ligadas à pergunta pelo sentido da vida.

Pode ser o modo mais adequado de responder à secularização que não apenas esvazia o espaço público da dimensão pública da fé, mas também seca o nosso coração da experiência religiosa. 

Creio que a secularização mais grave de todas é a que esvazia o nosso coração destas questões. O coração não apenas como o lugar das emoções e do afeto, mas também como lugar do questionamento e da luta interior, das dúvidas, da vontade e das decisões sobre o modo como reagir  e viver com  tudo isto.

Parte da cultura que nos configura e que nós ajudamos a moldar seca o coração, “seculariza-o”. De que modo? Desvaloriza a pergunta pelo sentido da vida, ilude os nossos limites, faz-nos acreditar que cada um de nós é uma mera autocriação. Daqui chegamos ao esquecimento da gratidão, ao esquecimento de que aquilo que somos é recebido através do tanto que nos é dado. Ilude-se a vulnerabilidade e a interdependência como lugares em que os laços que nos unem se podem expressar pelo serviço.

Neste sentido, creio que a amnésia religiosa da cultura não se prende apenas com o esquecimento de referências bíblicas ignorando, por exemplo, quem são David e Golias (cf. 1 Sm 17, 12-48) mas também com uma enorme iliteracia do coração. Não apenas por não sabermos lidar com as emoções e os afectos, mas também pela a incapacidade de reconhecer e ler as nossas lutas e questionamentos interiores, pela incapacidade de se situar diante delas e decidir.

Perante esta realidade, parece-me que a tradição cristã, nomeadamente através do acompanhamento pessoal e espiritual, tem algo a dizer. Mais do que começar a conversa indo atrás de questões que se ligam à dimensão moral da nossa consciência: “o que se pode fazer?”, ‘talvez possamos começar por nos situar a nível da dimensão espiritual da consciência ajudando a identificar as moções interiores provocadas pelas experiências do amor, da morte, da desilusão, do sucesso ou da traição para depois perguntar: “aonde é que isso te leva?”. Trata-se de ajudar a reconhecer a nossa condição de criaturas amadas ligadas entre si e a Deus e a identificar a direção que queremos seguir.

Num mundo em que para alguns a ideia de autenticidade foi substituída pela ideia de uma dispersão do eu que implica a divisão de cada pessoa num sem número de auto-investimentos não necessariamente unidos por uma ideia de coerência, ter em conta a secularização do coração e ser capaz de perguntar pela direção da vida pode ser um ótimo contributo dado à Igreja e ao mundo. Pode ser o modo mais adequado de responder à secularização que não apenas esvazia o espaço público da dimensão pública da fé, mas também seca o nosso coração da experiência religiosa.

Fotografia de Roberto Sorin – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.