À quinta foi de vez. E agora?

Para defender a vida, não bastam proclamações de princípios, nem anátemas mais ou menos direcionados, mas são necessários atenção, proximidade, capacidade de escuta, por parte de todos os atores direta ou potencialmente envolvidos.

Para defender a vida, não bastam proclamações de princípios, nem anátemas mais ou menos direcionados, mas são necessários atenção, proximidade, capacidade de escuta, por parte de todos os atores direta ou potencialmente envolvidos.

Depois de muitos avanços e recuos, dois vetos pelo Tribunal Constitucional e dois vetos políticos pelo Presidente da República, o diploma que consagra a “morte medicamente assistida” – habitualmente referido como “lei da eutanásia” – foi finalmente promulgado por Marcelo Rebelo de Sousa nesta terça-feira, 16 de maio. Ao que tudo aponta, é desta que a lei vai mesmo entrar em vigor, embora para que se torne efetiva, deve, todavia, ainda ser regulamentada, e criadas as estruturas previstas, o que pode ainda dar azo a algumas batalhas políticas e jurídicas.

Como Igreja, só podemos partilhar o sentimento de tristeza expresso pelo Papa Francisco no dia 13 de maio, aquando da confirmação do diploma pelo Parlamento. Tristes, não apenas porque os nossos sentimentos religiosos foram beliscados ou porque o Estado facilita uma prática contrária aos princípios e valores da nossa fé, mas porque este “passo” representa um retrocesso civilizacional, um passo atrás na humanização do nosso viver coletivo.

A aprovação da lei e a sua cada vez mais provável aplicação em nada nos demove de quanto até aqui foi defendido e que o Ponto SJ exprimiu no seu editorial de 2018. Ainda que se possa argumentar uma maior legitimidade política do Parlamento, pois hoje ninguém se pode dizer “surpreendido” ou “enganado” pelas posições e orientações dos vários partidos sobre a matéria, continua a faltar um debate sério na sociedade portuguesa acerca das problemáticas do final da vida, da doença (grave), da incapacidade. Permanecem muitas inconsistências nos conceitos e nas formulações (os avanços e recuos do texto parecem-me sinal disso) que fazem temer um progressivo alargamento das situações em que é admitido o recurso à “morte assistida”. Por fim, preocupa-nos a insistência num conceito de autonomia, de liberdade e de dignidade marcadamente individualistas, que, ultimamente, deixam a pessoa que sofre sozinha diante da escolha entre a vida e a morte.

Por fim, preocupa-nos a insistência num conceito de autonomia, de liberdade e de dignidade marcadamente individualistas, que, ultimamente, deixam a pessoa que sofre sozinha diante da escolha entre a vida e a morte.

O que está na lei?

O diploma aprovado admite a morte medicamente assistida «por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde» (art. 3º, n. 1). A concretização do pedido deve ocorrer, preferencialmente, por via de suicídio medicamente assistido (autoadministração de fármacos letais) e, apenas no caso de o doente estar impedido, realiza-se através de eutanásia (administração de fármacos letais pelo médico ou profissional de saúde).

A lei prevê um procedimento complexo e longo, que não pode durar menos de dois meses, conduzido por um “médico orientador” escolhido pelo doente e que compreende, além do parecer deste médico, também o do médico especialista na patologia que o doente sofre, o de um psiquiatra e o de uma “comissão de verificação e avaliação“ (nacional) composta por dois juristas, um médico, um enfermeiro e um especialista em bioética. A cada um dos passos, é pedido à pessoa que reitere formalmente o seu desejo de avançar para a morte assistida.

Abstraindo da questão de princípio em torno da inviolabilidade da vida humana e resistindo a entrar na questão da “burocratização” da morte (um tema sobre o qual valeria a pena refletir), todo este procedimento e, em geral, todas as “garantias” e “travões” colocados pela lei, oferecem pouca segurança no sentido de impedir a banalização da ajuda ao suicídio e até, no caso da eutanásia, do próprio ato de matar, por parte do Estado e dos seus agentes. Exemplo disso é a referência aos cuidados paliativos, que a lei prevê que sejam apresentados como alternativa sempre disponível: «Ao doente é sempre garantido, querendo, o acesso a cuidados paliativos» (art. 4º n. 6). Que valor terá esta proclamação se, reconhecidamente, as estruturas disponíveis não cobrem as necessidades existentes? Quem será responsabilizado pela inoperatividade desta “garantia” (na ausência da qual fica comprometida a própria ideia de “escolha livre” consagrada na lei)? Não se vê, pois, como os mecanismos previstos possam conter alargamentos, e até abusos na interpretação e na aplicação da normativa no sentido de alargar o recurso à morte assistida.

O que se segue?

Aprovada e promulgada a lei, o que resta fazer a quem se assume contrário à institucionalização da eutanásia e da assistência ao suicídio? Certamente, aqueles que nos definimos “defensores da vida”, não nos consideramos derrotados, nem tampouco − acredito eu − somos chamados a “rasgar as vestes” e a desistir do confronto democrático de ideias, optando por caminhos de radicalização. Entre estes extremos, não faltam possibilidades para trabalhar no sentido de promover uma “marcha-atrás” que leve à revogação da lei ou à sua não efetividade. Porém, esta via, que é responsabilidade, antes de mais, de quem exerce determinados poderes públicos, não pode ser a única, nem talvez a principal (até porque objetivamente as hipóteses do seu sucesso parecem poucas).

Isso não significa baixar os braços, mas levar a defesa da vida para outro patamar, já não o do confronto politico-legislativo, mas o do esclarecimento e da formação das consciências. Sem negar a força pedagógica que uma orientação legislativa sempre possui, é possível contrapor à “solução” da eutanásia ou do suicídio assistido um verdadeiro acompanhamento e cuidado às pessoas que sofrem e enfrentam a tentativa de desistir da vida. Para este esforço, não bastam proclamações de princípios, nem anátemas mais ou menos direcionados, mas são necessários atenção, proximidade, capacidade de escuta, tanto por parte do pessoal médico, como por parte de todos os atores direta ou potencialmente envolvidos (famílias, Igrejas, associações, etc.). Enquanto houver pessoas que “de forma séria, esclarecida e reiterada” pedem ajuda para morrer, não poderemos deixar de perguntar-nos: foi feito verdadeiramente tudo para que elas possam desejar caminhos alternativos? Como podemos fazer mais para, ao jeito de Jesus, encontrar caminhos alternativos de vida, escolhidos pela pessoa da mesma forma séria, esclarecida e livre?

Enquanto houver pessoas que “de forma séria, esclarecida e reiterada” pedem ajuda para morrer, não poderemos deixar de perguntar-nos: foi feito verdadeiramente tudo para que elas possam desejar caminhos alternativos?

Não se diga, porém, que está na hora de uma “privatização” da defesa da vida, pois, a (provável) entrada em vigor e aplicação da lei convoca-nos para uma ativa vigilância, tanto ao nível dos casos concretos, como das tendências e das políticas públicas. Assim, não podemos permitir que sejam silenciados ou acantonados quantos foram e continuam contrários a esta normativa, tanto nos sistemas de saúde, como na sociedade civil. Em particular, preme evitar que se constituam espaços, físicos e institucionais, “amigos” da morte assistida, onde, por afastamento imposto ou por autoexclusão, os defensores da vida não tenham presença, acabando por deixar sozinhos aqueles que mais sofrem. Como Igreja, queremos, antes de mais, estar, acompanhar, amar incondicionalmente, até ao fim.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.