A pandemia da violência

Cerca de 67% da população mundial vive atualmente em países onde há graves violações da liberdade religiosa. Esta é uma das principais conclusões do relatório elaborado pela Fundação Ajuda à Igreja que Sofre divulgado esta manhã.

Cerca de 67% da população mundial vive atualmente em países onde há graves violações da liberdade religiosa. Esta é uma das principais conclusões do relatório elaborado pela Fundação Ajuda à Igreja que Sofre divulgado esta manhã.

Da Nigéria a Moçambique, do Paquistão ao Chile, da China ao Mali… os relatos sucedem-se até à náusea. São crimes de ódio, pessoas violentadas na sua dignidade, nos seus direitos mais básicos. São pessoas que fogem, que estão na mais absoluta indigência. São vítimas da perseguição religiosa no mundo. O número assusta.

Cerca de 67% da população mundial vive atualmente em países onde há graves violações da liberdade religiosa. Esta é uma das principais conclusões do relatório elaborado pela Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (Fundação AIS) publicado esta manhã em Lisboa em simultâneo com as principais capitais europeias. Estes 67% significam cerca de 5,2 mil milhões de pessoas. De forma exaustiva, foram analisados todos os países do mundo. Mais de trinta especialistas estudaram documentos, relatos publicados em jornais e revistas, entrevistaram pessoas, visionaram imagens. Em mais de 800 páginas pode ler-se como vai o mundo no que diz respeito a uma das liberdades básicas, inscritas na Declaração Universal dos Direitos do Homem: o famoso artigo 18º. As conclusões são alarmantes.

A catalogação do crime

Os números sucedem-se de forma trágica. Cada um destes algarismos representa uma quantidade impressionante de pessoas. Muitas destas pessoas deixaram de ser livres ou nunca souberam o que isso significa. Há mulheres escravizadas, crianças-soldado, raparigas roubadas às famílias e colocadas em rede de tráfico sexual… Os países são agrupados por categorias. Há aqueles em que se registam casos de “violação da liberdade religiosa”, há os de “discriminação” e os que estão catalogados como de “perseguição”. Nove países aparecem nesta categoria pela primeira vez: sete em África (Burkina Faso, Camarões, Chade, Comores, República Democrática do Congo, Mali e Moçambique) e dois na Ásia (Malásia e Sri Lanka).

O ‘califado’ em África

África é um continente onde se regista, de dia para dia, um número crescente de casos de perseguição de minorias religiosas. Há um padrão comum à maioria destes países caídos nas malhas do extremismo: a presença de grupos jihadistas que aspiram à criação de um vasto ‘califado’. A cada dia somam-se histórias de terror, de assassínios em massa, de pessoas executadas a sangue frio, de aldeias que se esvaziam, da impotência dos países frente a esta ameaça armada. Moçambique é só um dos países onde isto está a acontecer. Cabo Delgado é apenas um lugar no mapa na ambição jihadista. O Burkina Faso é outro destes países.

Mulheres e crianças

A perseguição às minorias religiosas implica, com uma frequência também alarmante, a violência sobre as mulheres e as crianças. Em alguns países, isso ocorre muitas vezes perante a complacência criminosa das próprias autoridades. É o caso, por exemplo, do Paquistão. A Fundação AIS tem procurado denunciar casos de jovens raparigas, por vezes ainda crianças, que são raptadas das casas dos seus pais, são violentadas, forçadas a casar e a converterem-se ao Islão. Padrão comum nestes casos, a pobreza das famílias cristãs ou hindus, as duas principais minorias religiosas neste país. A iníqua lei da Blasfémia também tem continuado a fazer as suas vítimas. O caso de Asia Bibi, uma mãe de cinco filhos que foi condenada à morte por blasfémia por ter bebido um copo de água de um poço e que só não foi enforcada graças a uma impressionante campanha internacional a seu favor, é apenas um exemplo. Uma história com final feliz apesar de esta mulher cristã ter passado quase uma década numa minúscula cela, sempre debaixo das ameaças mais tenebrosas.

A perseguição às minorias religiosas implica, com uma frequência também alarmante, a violência sobre as mulheres e as crianças. Em alguns países, isso ocorre muitas vezes perante a complacência criminosa das próprias autoridades.

O ‘Big Brother’ na China

O relatório da Fundação AIS destaca também uma tendência que começa a ser comum em países como a China, muito centralizados e com baixos níveis de proteção dos direitos humanos: o abuso da tecnologia digital. A inteligência artificial permite a vigilância de multidões nomeadamente através de alta tecnologia de reconhecimento facial. Com estes instrumentos, através de câmaras de vigilância, sensores, scanners, num país autoritário governado pelo Partido Comunista, começa a soar o alarme face ao potencial persecutório que todos estes instrumentos representam. E por vezes, a perseguição nem precisa de metodologias subtis. Na província de Xinjiang, apesar dos protestos da comunidade internacional, calcula-se que haverá pelo menos cerca de um milhão de pessoas, pertencentes à comunidade uigure, em “campos de reeducação” onde estão sujeitas a “detenção arbitrária em massa, tortura e maus-tratos”, como se pode ler no Relatório da AIS.

Assistência negada

A perseguição religiosa acontece por vezes nas circunstâncias mais adversas e até absurdas. Quando seria de imaginar uma maior solidariedade entre as pessoas numa situação difícil, como por exemplo a pandemia do coronavírus, aquilo a que se assiste é a discriminação punitiva das comunidades minoritárias, dos mais frágeis, mais pobres, mais indefesos. Mesmo sabendo-se que estas comunidades sobrevivem normalmente com grande dificuldade, recorrendo a trabalhos duros, mal pagos e incertos. O confinamento decretado pelas autoridades conduziu muitas famílias cristãs a situações dramáticas de pobreza. No Paquistão ou na Índia, por exemplo, houve inúmeros relatos de casos em que foi negada a assistência humanitária às minorias religiosas.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.