No passado dia 17, o Sumo Pontífice, Francisco, fez publicar no Bollettino da Santa Sé, dando assim o seu aval, um ensaio – ‘Oeconomicae et pecuniariae quaestiones’ – que havia resultado de reflexões produzidas no âmbito da Congregação para a Doutrina da Fé, sobre o tema da ética e da sua relação com os mais variados aspetos que compõem o que, em sentido lato, podemos designar de sistema económico financeiro[1].
O documento faz um exercício de diagnóstico sobre questões muito concretas num confronto permanente com as balizas éticas caras aos melhores princípios cristãos e humanistas e oferece, ato contínuo, sucessivos convites à ação, guiados por um apurado sentido de alcance de um novo estádio que, para cada matéria concreta, garanta o que se pode designar de promoção integral da pessoa humana.
Não me cabe aqui – na figura de comentador bem encostado à esquerda do espectro político – ser exaustivo, mas é de justiça, e servirá de incentivo à leitura integral, espero, a referência a alguns dos temas abordados e respetivas propostas conexas.
E os temas vão desde os princípios de governo internos à empresa, passando pelos curricula nas universidade de economia e finanças, à necessidade de regulação transnacional. Mas versam também sobre questões relacionadas com o mercado de capitais, como sejam a titularização, o crédito, os derivados, o high frequency trading, o shadow banking e ainda aspetos da política fiscal, como as offshores e a fiscalidade ou aspetos relativos à intervenção estatal direta sobre os mercados.
Conscientes de que não há soluções universais permanentemente eficazes para economias distintas ou para diferentes momentos no tempo (….) os autores conseguem, ainda assim, apontar a necessidade de regular de forma mais imperativa onde predomina o que é especulativo ou mesmo apontar o caminho da proibição onde não se vislumbra um racional benigno.
Este ‘Oeconomicae et pecuniariae quaestiones’ não evita os escândalos da LIBOR, das offshore, da economia centrada na cultura do desperdício ou sequer as reflexões sobre o risco sistémico, ou o “nexo” especulativo tão pervasivo em tantas matérias financeiras, nem sempre escudado pelo papel de “óleo da máquina” que por vezes o justifica. Mas, mais significativo do que tudo isto, o texto destaca-se pela ousadia das propostas.
Conscientes de que não há soluções universais permanentemente eficazes para economias distintas ou para diferentes momentos no tempo (um facto que nem todos os economistas, tragicamente, parecem conhecer), os autores conseguem, ainda assim, apontar a necessidade de regular de forma mais imperativa onde predomina o que é especulativo ou mesmo apontar o caminho da proibição onde não se vislumbra um racional benigno.
Se bem entendi a grelha de análise, se algo diminui o horizonte da promoção integral da pessoa humana, se compromete a distribuição universal dos bens e recursos escassos do planeta e se ignora a opção preferencial pelos mais desfavorecidos, seja esse algo um produto, uma política, uma organização, uma forma de funcionar, esse algo não têm razão de ser no seio de uma comunidade.
Para concretizar, e para sublinhar um dos aspetos mais radicais das várias propostas de ação, alguns dos produtos financeiros complexos – tipicamente derivados financeiros cujo sentido original se desvirtuou e que estão hoje assentes numa “finança do azar e das apostas no insucesso de outros” -, surgem entre os alvos a proibir. Segundo os autores, estes instrumentos financeiros não oferecem mais do que “canibalismo financeiro”, induzindo um desalinhamento entre aquilo que é o interesse coletivo de prosperidade, confiança e sucesso de uma empresa e do sentido da comunhão entre a comunidade e aquele que é o interesse estrito de quem só ganhará algo com o infortúnio alheio, fazendo desse desfecho a aposta.
É bom e estimulante (…) naquilo que me parece uma interpretação mais ousada da Doutrina Social da Igreja (no que se refere à propositura de ação), se adivinhem caminhos comuns que me parecem muito próximos, nestas matérias, do que creio ser o trilho que teremos de seguir – na social democracia.
E perante isto (sendo “isto” toda a prosa que não apenas este detalhe no meio do texto)… Inveja! Sendo quem vos escreve um social democrata que acompanha, como pode, a crise da sua família política que procura reinventar-se e reaproximar-se de quem nunca devia ter deixado de estar no centro das suas preocupações de intervenção política (os trabalhadores de todas as economias e setores clássicos e modernos, os que cuidam de viver em equilíbrio sustentável com o seu meio ambiente assim como os que mais necessitam que se redistribua o que produzimos como comunidade), confesso esta primeira reação que depressa converti em esperança.
E, de facto, como é bom e estimulante que, com base nesta trindade, naquilo que me parece uma interpretação mais ousada da Doutrina Social da Igreja (no que se refere à propositura de ação), se adivinhem caminhos comuns que me parecem muito próximos, nestas matérias, do que creio ser o trilho que teremos de seguir – na social democracia – se quisermos devolver aos cidadãos uma proposta política reconhecível, realista, ambiciosa, eticamente superior e moralmente alinhada com os próprios valores e cuidados daqueles que queremos representar.
Entre os mais propensos a preconceitos e que olhem para a Igreja atual de forma maniqueísta e desatualizada no que se refere à reflexão sobre a organização economico-financeira do planeta, mas também entre os que insistem em hipervalorizar aspetos mecânicos do funcionamento dos mercados, confundindo-os com o fim precioso que esteve na sua génese enquanto instrumentos, o confronto com este ‘Oeconomicae et pecuniariae quaestiones’ não poderá deixar de ser chocante. Um documento que certamente irei reler mais adiante.
[1] “Oeconomicae et pecuniariae quaestiones – Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro” in http://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2018/05/17/0360/00773.html#portoghese
Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.