A (necessária) reforma do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), prometida no programa do Governo e impulsionada pela morte de um cidadão ucraniano nas instalações do SEF do Aeroporto Humberto Delgado em março de 2020, é sintomática da urgência de reformar o sistema de imigração em Portugal – é preciso reformar não apenas o SEF, mas o sistema de imigração, do qual o SEF é apenas uma pequena parte.
A proposta de reforma no SEF que passa pela intenção de transferir as competências administrativas do SEF para o SEA (Serviço de Estrangeiros e Asilo) e as competências de fiscalização de fronteiras e o afastamento de cidadãos estrangeiros para a GNR e PSP não é suficiente.
A migração em Portugal não é, objetivamente, um caso de polícia. Em 2019, dos quase 200 mil processos do SEF, apenas 0.3% tinham natureza criminal; 32% constituíram contraordenações administrativas (57% das quais por permanência ilegal à procura de trabalho) e 67,4% foram processos de concessão de autorização de residência (AR). Contudo, a migração continua a ser encarada como um caso de polícia, e é sobre as polícias que se tem falado a propósito da reforma do SEF.
Objetivamente Portugal precisa de imigrantes, pois equilibram a nossa balança demográfica. Somos hoje o 5º país mais envelhecido do mundo; do mundo! Este desequilíbrio torna cada vez mais a sociedade portuguesa pouco desafiadora, ambiciosa e inovadora. E torna insustentável a solidariedade inter-geracional, quer a comunitária (família e amigos), quer a institucional (pensões de reforma). Quem cuidará dos idosos e assegurará a sustentabilidade da segurança social? Note-se que os imigrantes têm contribuído todos os anos para a Segurança Social com saldos líquidos positivos superiores a €800 milhões de euros.
O foco da discussão deveria, pois, ser como trazer mais imigrantes e de forma mais digna, mais segura e organizada para Portugal, ao invés de focarmos a discussão em saber qual a melhor polícia.
É preciso um serviço administrativo célere, que não demore anos a responder aos pedidos de Autorização de Residência (AR), cessando com os anos de indigência social e jurídica pelos quais as pessoas passam.
O que é preciso é:
- Um regime de vistos que permita que um cidadão estrangeiro venha procurar trabalho em Portugal, conforme previsto nas Grandes Opções do Plano 2020 – 2023 do Governo, permitindo que os imigrantes não sejam detidos aleatoriamente pois teriam um caminho regular de entrada;
- Uma rede consular melhor distribuída, que também levasse em conta os países de origem da maioria da imigração (medida prevista no Programa de Governo); e uma rede consular que dê resposta aos pedidos de visto, sem a qual a existência abstrata do direito a um visto não é exequível;
- Um serviço administrativo célere, que não demore anos a responder aos pedidos de Autorização de Residência (AR), cessando com os anos de indigência social e jurídica pelos quais as pessoas passam até terem a AR;
- O fim da generalização da detenção de imigrantes irregulares (conforme a petição do JRS Portugal #Nãohácrimenãoháprisão) mediante a aplicação mais generalizada das medidas alternativas à detenção – já previstas na lei – tais como a apresentação periódica em órgãos de polícia, e a criação de novas medidas alternativas como a gestão social do caso por uma associação de apoio a imigrante, conforme as boas práticas internacionais.
Mas a discussão pública em torno da imigração continua a focar-se nos 0,3% de casos de crime.
Olhando com maior detalhe para o SEF, o seu problema estrutural reside na incapacidade de responder ao volume de trabalho devido, desde logo, à falta de meios humanos. O Livro Branco editado pelo JRS Portugal em 2019 concluiu que os recursos humanos não acompanharam o aumento do número de imigrantes e refugiados. Também os meios informáticos do SEF estão obsoletos e existe uma desnecessária burocracia e cultura de atendimentos presenciais.
A reforma anunciada limita-se a mudar “o polícia” e não a política nem os meios ao dispor da polícia e dos serviços administrativos envolvidos.
A par da ineficácia, também há uma cultura de falta de transparência e de serviço ao cidadão estrangeiro que se verifica sobretudo na gestão pouco dialogante e pedagógica dos processos, sem informar os cidadãos das várias possibilidades legais ao seu dispor. Faz por isso toda a diferença que o cidadão estrangeiro esteja apoiado juridicamente por um advogado privado ou por um profissional de uma associação de apoio a imigrantes, como o JRS.
Em conclusão, a reforma anunciada limita-se a mudar “o polícia” e não a política nem os meios ao dispor da polícia e dos serviços administrativos envolvidos. Contudo, ainda vamos a tempo de uma verdadeira reforma, sendo para isso fundamental a discussão pública do tema.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.