A Igreja dos pobres sempre me fascinou. O início da Igreja é feito de pouca coisa, qual pobreza. Nas suas inquietudes e escapatórias, sem querer ser historicamente minimalista, são sobretudo os desvios dessa pobreza que descaraterizam a seiva da Igreja. Também nos nossos tempos, os legítimos olhares mais duvidosos sobre a Igreja fitam as suas riquezas. E eu próprio, quando me olho mais criticamente, como cristão, vejo falta de pobreza.
1- O que será a pobreza?
A palavra ‘pobreza’ está quase gasta, entrecruzada erraticamente nas suas dimensões pessoal, espiritual, cultural, social e política. Há várias pobrezas, dentro e fora de nós. A falta das necessidades mais básicas, como aquela de comer, é um rosto de pobreza que não podemos escamotear. Neste mundo, agora mais pequeno e ligado, continua a ser aviltante haver um qualquer habitante do planeta que não tenha o que comer. Enquanto isso acontecer, nenhum de nós pode estar descansado. Comer é necessário mas não suficiente para se ser livre. No seu poema cantado “liberdade”, Sérgio Godinho diz bem: “Só há liberdade a sério quando houver: a paz, o pão, habitação, saúde, educação”. Neste sentido, a promoção concreta das condições de vida de todas as pessoas, nestas diferentes áreas, são o nosso combate à pobreza. Há uma dimensão de pobreza mais profunda, que ultrapassa o pão mas que só é conquistável por quem tenha um mínimo de pão: chamamos-lhe pobreza espiritual. É uma bem-aventurança de abertura em crer para nada querer. Percebe-se bem naquele conto oriental segundo o qual um mendigo pediu a uma pessoa de posses que lhe desse algo. Essa pessoa deu-lhe tudo o que tinha. No dia seguinte, o pobre voltou e retorquiu: “ensina-me a ser como tu. Dá-me a riqueza de que eu preciso, que é a capacidade de dar tudo o que tenho, como fizeste ontem comigo”. Compreendemos bem que haja gente (e as duas gentes dentro de cada um de nós…) que seja rica-pobre e pobre-rica…
Face à pobreza e à injustiça, ao que falta de amor no mundo, sinto-me tremendamente esmagado. Esta pressão tem dois sentidos, que apertam ambos o meu coração: a compaixão evidente por aquele que sofre e a minha própria dor pelo pouco que dou.
2- A pobreza nos evangelhos
Há extensa bibliografia sobre este assunto mas talvez se consiga uma síntese consensual sobre a forma acolhedora, provocante e libertadora como Jesus se dirigia às pessoas. Todas elas carentes, frágeis, desejosas de algo mais. Todas elas, pobres, como nós. Os pobres do Evangelho são, pois, a mulher adúltera, o amigo traidor, o cobrador de impostos, o cego e a sua família, os convivas das bodas de Caná, o coxo e o paralítico, a mulher viúva e a samaritana com sede, a multidão com fome. O desfecho com os famintos pode inspirar-nos na resposta à pobreza, como Igreja: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mc 6, 37).
3- Uma pobreza que esmaga
Face à pobreza e à injustiça, ao que falta de amor no mundo, sinto-me tremendamente esmagado. Esta pressão tem dois sentidos, que apertam ambos o meu coração: a compaixão evidente por aquele que sofre e a minha própria dor pelo pouco que dou. Para estas entaladelas, ajudará a paciência, a perseverança da fé e a consequente ação. Não há outra resposta à chaga que não seja tocar-lhe. A insuficiência da minha doação aos pobres tem, aliás, algo parecido com a epistemologia da ciência e não só: quanto mais descobrimos, mais ignorantes nos encontramos, como se tentássemos alcançar uma linha do horizonte, que sempre se desloca adiante… Com a caridade, palavra desgastada mas que vale como sinónimo de amor, e particularmente amor aos mais pobres, acontece algo de parecido: quanto mais se dá mais se constata o que falta dar… Há pois um equilíbrio dinâmico a empreender, importante mas difícil, entre: a) assumir o que falta como luta face à pobreza, realizando concretamente a partilha (de bens, de tempo, de presença, de nós mesmos…); b) constatar a nossa insuficiência senão mesmo certa mediocridade neste combate; c) resistir sempre a ficar no sofá, excessivamente adaptado à complexidade do problema e às limitações próprias da ação. Há um certo conforto, também ele evangélico, que podemos valorizar a partir do pouco que fazemos; faz-se muito do pequeno: do grão de mostarda, da migalha, da moeda modesta, do cesto do pão…
4- Não perder de vista que a austeridade escolhida é uma burguesia
Aprecio e tento praticar a chamada economia da frugalidade, que nos aponta Serge Latouche. Mas há que registar que nós, deste lado do mundo, com comidinha à mesa e banho quente, podemos melhor fazer este caminho. Não posso pedir a um menino que vive de colheita de plástico em lixeiras da Indonésia que seja frugal, nem a um habitante de uma favela brasileira que não deseje fortemente ter um carro bom. Posso ser mais pessoal nisto: fui conquistando certa austeridade escolhida, mas tenho um salário garantido. Abrandei radicalmente o turismo longínquo, também a pensar no ambiente… mas já conheci muitas cidades em quase todas as latitudes; não tenho no meu horizonte trocar de veículo de transporte, mas já me fartei de andar em dunas com uma mota de boa cilindrada Honda Transalp; evito ir a restaurantes… mas já fui muitas vezes comer fora, etc, etc. Por isto mesmo, não me escandalizo com as pessoas que, tendo rendimento mínimo garantido, tomam o pequeno almoço fora… Claro, para elas é excepcionalmente bom, o que para nós seria criticamente ordinário… A sua pobreza pode não ser nem só nem principalmente de pão… mas é pobreza e pede a nossa entrega e a nossa criatividade. Compreendem-se bem os padres da teologia da libertação que, apesar dos conhecidos exageros de tal movimento, tinham muita razão cristã quando invocavam uma máxima a ter em conta: ao oferecer o pão da eucaristia, tenho que oferecer também pão a quem não o tem para comer.
5- Creio na Igreja, vou à Igreja, estou na Igreja ou sou a Igreja?
Quando rezo o credo, na esperança de não estar em heresia (…), faço uma auto-atualização que me confere mais sentido. Digo que creio em Deus, em Jesus, no Espírito Santo e que… creio em Igreja. Uso deliberadamente este ‘em’ (em vez de ‘na’), para sublinhar que a Igreja é o lugar onde me situo para viver as crenças vitais na trindade. Esta pertença assim dita não me desmobiliza e penso poder até evitar a idolatria institucional acrítica ou o “picar o ponto” num dinamismo desresponsabilizante. Pelo contrário, diria, pelo menos em desejo, quero trazer à minha relação com a Igreja certa ontologia e, por isso, ser Igreja, encoraja-me neste dom de ser um ordinário batizado. E se a Igreja é o lugar onde creio, se vivo em Igreja, esta é a Igreja de todos os que nela caminham e, por isso, é a Igreja dos pobres, que vivem em comunidade e celebram a alegria de se quererem partilhar, partir, comungar, ser pão para os outros… A Igreja será também o lugar onde a caridade aos mais pobres se exerce coletiva e comunitariamente. Se a salvação espiritual não é um caminho solitário, é o povo de Deus que reza “Pai nosso” e não “Pai meu” que dá pleno sentido à Igreja e, portanto, ser Igreja é co-laborar em conjunto no alívio dos mais necessitados. Somos ainda, tipicamente, “fraquinhos” cristãos de hospital de campanha, comparados com a mobilização celebrativa e outros apelos e manifestações…
E se a Igreja é o lugar onde creio, se vivo em Igreja, esta é a Igreja de todos os que nela caminham e, por isso, é a Igreja dos pobres, que vivem em comunidade e celebram a alegria de se quererem partilhar, partir, comungar, ser pão para os outros…
A constatação de que eu próprio sou um medíocre e tensional praticante da caridade, leva-me ao desejo de uma relação mais humilde (mais verdadeira) e mais obediente (capaz de escutar outras sensibilidades) com esta Igreja que sou. Com efeito, querendo manter a lucidez crítica, não posso deixar de ser moderado e misericordioso no olhar que estendo aquilo que falta à Igreja (…que sou, repito). A este nível da encarnação da pobreza a que somos chamados, somos também todos… pobres. Desejo evitar certo tom de protesto obsessivo pelo caminho que falta e dar eu próprio os passos possíveis, denunciar construtivamente, dar sugestões alavancadoras, fazer provocações que mobilizem…
6- Opção preferencial pelos pobres: uma escatologia
Não haverá outro devir mais livre e pleno, para cada um de nós, do que aquele de ser pobre e de preferir os pobres. No seu sentido mais amplo, ser pobre é ser de mãos vazias. Ser pobre é ser livre e livre para a doação. Há que equilibrar a aspiração à pobreza espiritual mais profunda (que só se consegue, me parece, com recolhimento e oração) com a atenção concreta e quotidiana aos francamente mais próximos.
Há pobres mais distantes, face aos quais algo podemos fazer mas cuja pobreza envolve complexidades enormes. Muitas vezes matam à fome as malhas políticas, militares, tribais, diplomáticas, etc. Por isto, estudar e depois exercer eticamente artes como o direito, a ciência, a economia, a medicina, a arte, as humanidades, a educação, a prática política, etc., podem e devem ser feitas com vista a minimizar a pobreza dos homens.
Estar sempre do lado dos pobres é o sítio da Igreja e, por isso, de cada um de nós. A opção preferencial pelos pobres tem de ser concreta. Tanto pode ser ir para um país distante em missão como comprar preferencialmente marcas de produtos com selos de garantia de não exploração, mesmo que mais caros. Pode ser preferir desenvolver um projeto de investigação científica que otimiza medicamentos anti-maláricos em vez de apostar na ciência que crie novos produtos tecnológicos que só sirvam para alimentar superficialidades do ocidente.
Vale a pena ser Igreja para ser pobre porque só o pobre pode partilhar. A sensibilidade à pobreza e a solidariedade são mandatos humanistas e universais. As metodologias são diferentes e o nosso distintivo, apesar de alguma luta, é o primado da aceitação da vida como um dom. Estar em missão para alimentar a prontidão de acolher a riqueza do tempo, do espaço e do outro é um privilégio. É o que nos espera, esta disposição para coisa nenhuma e, assim, para tudo. A pobreza é para erradicar. Tocaremos amanhã esta plenitude que, agora, aperitivamos: já… mas ainda não!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.