A conversar é que a gente O entende

Mas, diante de um ideal tão inspirador, pode surgir a pergunta: como é que não terminamos todos aos berros e com a certeza de que o Espírito Santo me falou a mim e que eu é que tenho que convencer os outros da verdade que me foi revelada?

Mas, diante de um ideal tão inspirador, pode surgir a pergunta: como é que não terminamos todos aos berros e com a certeza de que o Espírito Santo me falou a mim e que eu é que tenho que convencer os outros da verdade que me foi revelada?

Às vezes temos uma certa tendência a esgotar as palavras. Repetimos expressões como um refrão cansado e aquilo que podia ajudar a iluminar a realidade, acaba por adormecê-la entorpecida diante de nós. Falamos tanto de polarização que acabamos por assumi-la como inevitável, desistindo de procurar os meios que a desarmem.

Importa reconhecer com humildade que esta ferida do nosso tempo está presente na Igreja. Sem resignações autocomplacentes, temos que apender a viver com ela sem deixar morrer o fruto que o Espírito Santo quer gerar nas nossas comunidades.

No seu livro “El Ejercicio de la Teología” o teólogo espanhol Ângel Cordovilla recorda-nos: “O filho revela o Pai do mesmo modo que o Espírito revela aos homens o filho. A revelação realiza-se através do outro.”  O P. Arturo Sosa, sj, Geral da Companhia de Jesus, diz de um modo claro: “o Papa Francisco está a fazer finca-pé num modelo sinodal de liderança para a Igreja que implica uma maior participação e discernimento, respeitando o facto de o Espírito Santo trabalhar tanto em cada pessoa como na comunidade.” O responsável mundial dos jesuítas sabe bem que isto implica abrir processos, ou seja: “começar caminhos que não sabes aonde te levarão, abrir horizontes para que o Espírito Santo possa trabalhar.”

Mas, diante de um ideal tão inspirador, pode surgir a pergunta: como é que não terminamos todos aos berros e com a certeza de que o Espírito Santo me falou a mim e que eu tenho que convencer os outros da verdade que me foi revelada?

É preciso ter como horizonte a afirmação de Cordovilla “A revelação realiza-se através do outro”. Para que isso aconteça é necessário dispor-me a escutá-lo.

No começo da Companhia de Jesus, foi necessário chegar a diversas deliberações sobre o modo de organização que este grupo deveria assumir. Houve momentos de impasse, mas Inácio e os seus companheiros foram encontrando o modo de deixar que o Espírito Santo falasse através de uma escuta comum dos movimentos interiores que Deus ia gerando no interior de cada um deles. Inicialmente, este método foi aprendido de modo intuitivo e espontâneo e permitiu ir acertando com a vontade de Deus.

Mas volvidos quase cinco séculos desse tempo, ajuda-nos identificar um método que nos coloque diante de Deus e dos outros numa atitude de humildade sem a qual a escuta da vontade de Deus se torna impossível.

Nos últimos anos a Companhia de Jesus tem procurado aprofundar a prática da Conversação Espiritual forjada a partir das deliberações dos primeiros companheiros jesuítas. Este método deve necessariamente ser associado ao desejo do Papa assumir a sinodalidade como expressão da identidade de uma Igreja em conversão.

Por outro lado, este modo de conversar permite que a prática sinodal da Igreja se dê na suas diferentes esferas e grupos assumindo o princípio de que “o vento sopra onde quer” (Jo 3, 8). O Espírito não nos fala apenas através da estrutura clerical da Igreja.

 Como funciona este método? [1]

Antes de tudo há que referir que esta é uma prática comunitária. O contexto pode ser o de uma família, o de um grupo cristão, de uma comunidade religiosa ou de qualquer outro grupo que necessite de tomar uma decisão ou definir um sentir comum sobre alguma temática. Para que este exercício funcione há três elementos indispensáveis: partilhar com profundidade as moções pessoais; escutar aberta e atentamente as moções dos outros deixando que estas possam trazer luz às moções pessoais e buscar horizontes partilhados.

Assumidos estes princípios e Identificada a matéria em questão, o primeiro passo é um tempo de oração pessoal. Diante de Deus cada pessoa identifica luzes e sombras interiores. Ao mesmo tempo, prepara também a partilha das suas moções interiores com o grupo.

Depois de a oração pessoal, e mantendo-se em ambiente orante há que passar por três momentos distintos:

  1. Escutar: Partilha-se de um modo simples, profundo e sucinto as luzes e sombras que cada pessoa encontrou na sua oração. Não há lugar a comentar ou opinar. É um tempo de escuta em que cada um vai estando atendo ao que ressoa dentro de si, ao que lhe traz maior luz.
  2.  Fazer Eco: Uma vez mais não se trata de fazer comentários ou de “responder” ao que o outro disse ou partilhou. Não é tempo para “trocar argumentos”.  É um tempo para revelar à comunidade o que mais me trouxe luz na partilha dos outros, procurando identificar se gerou mais clareza quanto àquilo que Deus pede àquele grupo.
  3. Identificar o horizonte comum: Partindo daquilo que foi partilhado, o grupo procura identificar o que lhe pode estar a ser pedido. Algumas questões podem ajudar: Para onde nos conduz o Senhor? Quais são os convites que se repetem que poderiam traduzir-se em ações comunitárias ou apostólicas concretas? É importante notar que estas questões não têm como grande objetivo gerar um consenso ou um acordo, mas permitir que a comunidade seja sensível ao chamamento do Espírito.

Algumas indicações práticas: Importa que exista um moderador que dá ritmo, regula o tempo e toma nota do que foi partilhado. No meio de cada partilha, em especial na primeira ronda, pode ajudar fazer breves momentos de silêncio entre cada intervenção. Ajuda muito que o ambiente exterior em que decorre este exercício possa ajudar à oração (vela, imagem. etc).

De tão simples, este exercício quase pode parecer ingénuo. Mas a verdade é que tem uma enorme força e em alguns momentos pode mesmo desbloquear situações de tensão, criando as condições para que cada um saia do “seu próprio amor querer e interesse” (cf. Exercícios Espirituais de Santo Inácio, 189), dispondo-se à verdadeira escuta, na convicção de que a revelação se atualiza através do outro. Por outro lado, este modo de conversar permite que a prática sinodal da Igreja se dê na suas diferentes esferas e grupos assumindo o princípio de que “o vento sopra onde quer” (Jo 3, 8). O Espírito não nos fala apenas através da estrutura clerical da Igreja.

Vivemos num tempo em que é difícil saber conversar. Mas sem esta conversação espiritual, sem esta disposição à escuta do outro, não poderemos ouvir Deus nem o que ele deseja comunicar-nos. Só conversando O poderemos entender.

 

Nota: Para aprofunda este tema vale muito a pena ler o livro A caminho com Inácio do P. Arturo Sosa, sj.

1] Para responder a esta questão, sigo de perto o que está recolhido no livro “A Caminho Com Inácio” do P. Arturo Sosa (Cf. pp 285-286) Este livro foi lançado recentemente a nível mundial como forma de assinalar o ano Inaciano.

Fotografia: Gabriella Clare Marino – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.