Se Jesus nos pede para não acumularmos “riquezas na terra” (Mt 6, 19), por que razão vem a Igreja dar conselhos sobre a atividade económica? De facto, quem afirma a impossibilidade de “estar [simultaneamente] ao serviço de dois senhores, pois ou odeia um e ama o outro, ou agradará a um e desprezará o outro”, parece desvalorizar os affaires económicos. Quem considera não ser possível “estar [ao mesmo tempo] ao serviço de Deus e do dinheiro” (Mt 6, 24), exigindo o serviço (exclusivo) de Deus, talvez tenha dificuldade em concluir um curso de economia.
No entanto, numa carta datada do passado 1.º de maio de 2019 – qual dia do trabalhador– o Papa convida estudantes de economia e jovens empresários a refletir sobre a economia do futuro. Intitulado A economia de Francisco, este evento – cujo nome se inspira em São Francisco de Assis – realizar-se-á em Assis entre os dias 26 e 28 de Março de 2020. Foi apresentado esta manhã em Roma, em conferência de imprensa, e segundo o site oficial do evento trata-se de juntar sinergias na construção de uma economia sustentável que promova o ambiente e a pessoa humana.
Fiel ao Evangelho, o Sumo Pontífice convida-nos a viver uma espiritualidade incarnada. É nesse sentido que ele apela a uma “reanimação” da economia, “atenta à pessoa e ao ambiente.” Já em 2016, num discurso dirigido aos membros do Movimento de Trabalhadores Cristãos, o Papa lembrou a “vocação ao trabalho” pela qual o homem se realiza. Percebemos, nesse tal discurso, a coerência de um justo interesse pela economia que se mantém fiel à radicalidade das palavras de Jesus. Em sintonia com o ensinamento de Jesus, para quem é impossível servir simultaneamente “a Deus e ao dinheiro”, o Papa Francisco considera “o dever de formar (…) para um novo humanismo do trabalho onde (…) a economia sirva o homem, e não se sirva do homem.” Tais palavras orientam para uma interpretação correta e equilibrada dos versetos evangélicos anteriormente citados.
O dinheiro, a economia, deve estar ao serviço da lei da caridade: deve estar ao serviço do amor de Deus e do próximo.
Se, realmente, a fé humaniza, então a comunidade dos fiéis deve libertar cada um dos seus membros de todos os ídolos que aprisionam, de forma a adorarmos apenas o Criador. Vislumbra-se, neste contexto, o primado da economia sobre outros valores como uma idolatria desumanizante. É por isso que o Papa apela a uma “aliança” no “processo de mudança global” exigida pelo mundo de hoje.
A partir da carta do 1.º de Maio e da conferência de imprensa concedida esta manhã no Vaticano, gostaria de sublinhar quatro princípios que a conferência A economia de Francisco, muito provavelmente, irá aprofundar e discutir no sentido de, na medida do possível, os aplicar:
(1) Preservação da casa comum – Perante o enorme desafio dos riscos inerentes aos danos causados ao planeta durante a industrialização ainda em curso, o Papa relembra a sua encíclica Laudato Sì’, onde expressa o vínculo intrínseco entre a promoção da justiça e a conversão ecológica. Ao nos apresentar Poverello de Assis como um exemplo de alguém consciente da importância de uma “ecologia integral”, que é também “humana”, Francisco faz ecoar a encíclica do seu predecessor Caritas in veritate. O combate da “cultura do desperdício” realiza-se a partir de uma espiritualidade que sente a terra como “irmã” e como “mãe”: “Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã a mãe Terra” (cf. Cântico do irmão sol).
(2) Dar mais espaço à lógica do dom – Sem cair no maniqueísmo que facilmente diaboliza as forças do mercado, A economia de Francisco irá certamente procurar formas de expressar a fraternidade e o “princípio da gratuidade” (cf. Caritas in veritate §34). Tentando aproveitar ao máximo as potencialidades do mercado em gerar riqueza, no horizonte cristão é importante ir para além do simples lucro e da justiça meramente comutativa (cf. Caritas in veritate §35). Como afirma o Papa Bento XVI, “a caridade supera a justiça e completa-a com a lógica do dom e do perdão”, “a «cidade do homem» não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão” (cf. Caritas in veritate §6).
(3) Estender a fraternidade para além dos credos e das nacionalidades – A fé cristã venera a Trindade, como comunhão de três pessoas distintas e unidas. O cristão é, portanto, chamado a reconhecer-se um ser de comunhão com Deus e com o próximo. E as circunstâncias do mundo contemporâneo tornam essa comunhão necessária à sua preservação. De facto, não podemos resolver sozinhos ou isolados em pequenos grupos os desafios que hoje enfrentamos. É nesse sentido que o Papa dirige a presente carta para além das fronteiras da Igreja, a todos os “homens de boa vontade”, para que possamos superar, juntos, os desafios, ao mesmo tempo que testemunhamos a fé num Deus que é comunhão. Por isso, coerente à fraternidade solicitada tanto pela fé como pelas circunstâncias atuais, o Sumo Pontífice tem promovido tanto o diálogo inter-religioso como o acolhimento de emigrantes ou refugiados.
(4) Começar pelo assumir da responsabilidade individual – Existe um perigo na enunciação de princípios gerais: por serem vagos, facilmente permanecem no reino das ideias em vez de se concretizarem na prática. Consciente da importância de mudarmos, sobretudo no Ocidente, os nossos “estilos de vida”, o Papa Francisco apela à responsabilidade individual de cada pessoa humana.
Cabe a cada um de nós ser capaz de assumir um estilo de vida conforme à sustentabilidade da casa comum e ao respeito pela dignidade dos outros.
Provavelmente, diante de desafios tais como as migrações, o terrorismo ou as alterações climáticas, o assumir da responsabilidade individual não é suficiente. Mas, se é verdade que os desafios exigem uma concertação global através de mediações institucionais e políticas, também é verdade que o assumir da responsabilidade individual promove a transformação que procuramos.
Aproveitemos, portanto, a realização deste evento para refletir sobre o nosso futuro.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.