A Caminhada pela Vida (ou outra caminhada qualquer)

Partindo da experiência da participação na "Caminhada pela Vida" que, no último fim de semana, mobilizou milhares de pessoas em todo o país, José Maria Montenegro questiona o porquê da escassa cobertura mediática e as suas consequências.

Partindo da experiência da participação na "Caminhada pela Vida" que, no último fim de semana, mobilizou milhares de pessoas em todo o país, José Maria Montenegro questiona o porquê da escassa cobertura mediática e as suas consequências.

Vou pôr de lado o tema do double standards e da escassa cobertura mediática que merecem iniciativas com enorme adesão face a outras com inexpressiva militância. Vou pôr também de lado o facciosismo que estará subjacente a esse double standards.
Há dois pontos que, a propósito da Caminhada pela Vida do passado sábado, eu queria mesmo tratar (ou denunciar, é mais isso). Aliás, os ditos pontos servem para a Caminhada pela Vida como servirão para outras congéneres.

A Caminhada pela Vida não foi uma iniciativa de um qualquer partido (vivemos, aliás, um tempo em que nenhum partido do sistema se «mete» nestes temas). Também não foi de uma grande ou média intersindical que, com mais ou menos anos, com mais ou menos subsídios (legais ou derivados) está talhada e rotinada em manifs. Não foi, portanto, uma iniciativa de profissionais, de uma organização do sistema, de uma cúpula com «chefes de gabinete» e «assessores de imprensa» (de boas e privilegiadas relações com os media que contam). Não foi nada disso. Foi mesmo uma organização da sociedade civil. Pois fica a sensação de que se tivesse sido uma iniciativa de um partido (qualquer um) ou de uma intersindical, a cobertura mediática teria sido logo outra. Fala-se muito dos vícios dos partidos. Talvez fosse de falar dos vícios das nossas televisões e jornais. Porque tem consequências que germinam nesses vícios.

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Caminhada pela Vida no Porto

O outro ponto tem também a ver com os partidos e os media.
Vivemos – dizem-nos quase obsessivamente – com uma sociedade civil que não existe, não se manifesta, sem «massa crítica» e anestesiada e dominada pelo Estado e pelas suas instituições tradicionais (partidos políticos especialmente incluídos)
Se repararmos bem, apesar dessa aparente apatia da sociedade civil – que é sempre pomposamente desmerecida na hora de explicar os altos índices de abstenção, a degradação da classe política, os vícios e a linguagem dos partidos políticos e, também, a crise de «tiragem» dos jornais – o que tivemos ali, na Caminhada pela Vida, foi mesmo uma manifestação relevantemente participada da dita sociedade civil.

Ora eu não fiz nenhum estudo (fica já a ressalva). Mas arrisco dizer que de entre os milhares que se manifestaram (e foram mesmo milhares) estavam muitos dos desencantados do sistema. Dos que – dizem – não levantam o rabo do sofá, não se manifestam e já desistiram. Serão muitos daqueles que já não se sentem representados no quadro «tradicional» e que, por isso, não votam, não querem saber e têm urticária aos partidos. E deixaram de comprar jornais (vale a pena sublinhar esta dimensão).
Pois bem. E qual foi o respaldo mediático que mereceu uma manifestação da sociedade civil participada por milhares de pessoas? Foi praticamente ignorada.

Diria, no mínimo, que vale a pena pensar nisto. E diria (fica a pista) que não é inteligente desprezar a dimensão orgânica e moderada que ainda se cumpre na «sociedade civil».
Digo mais. «Até» pode ter sido uma manifestação pela Vida (que não «vos» cai no goto). Mas depois não se queixem da crise dos moderados.

 

Este artigo foi originalmente publicado na página pessoal do facebook do seu autor.
Fotografias: ©Caminhada pela Vida.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.