A batalha das nossas vidas

Guterres na revista Time, com água pelos joelhos, alerta para trágicas consequências das alterações climáticas no mundo. Em 2010, no Banglasdeh, testemunhei meio país a viver debaixo de água. O que nos falta para querermos salvar o planeta?

Guterres na revista Time, com água pelos joelhos, alerta para trágicas consequências das alterações climáticas no mundo. Em 2010, no Banglasdeh, testemunhei meio país a viver debaixo de água. O que nos falta para querermos salvar o planeta?

Salvar o planeta é a batalha das nossas vidas. A mensagem acompanha a impactante fotografia que faz capa da Time desta semana. António Guterres deixa-se fotografar com água pelos joelhos, em Tuvalu, país no sul do Pacífico que nos obriga a uma pesquisa no Google mas que vem para a capa de uma das revistas mais famosas do mundo por ser dos mais afetados pelas alterações climáticas e pela subida do nível das águas. De fato e gravata, dentro de água, o secretário-geral da ONU tenta captar a atenção mediática dos países desenvolvidos para uma tragédia que afeta sobretudo as zonas mais vulneráveis do globo. Uma imagem chocante que pretende alertar os mais ricos para o lado negro do seu super desenvolvimento: a luta pela sobrevivência dos mais pobres. Guterres surge com um ar sereno mas a imagem soa a desespero, a último recurso, como se pregar aos microfones dos media já não fosse suficiente para passar uma mensagem que meio mundo prefere não ouvir.

Esta fotografia mexeu-me com as entranhas e fez-me recuar a 2010. Na altura era jornalista especialista em temáticas de ambiente e, a convite da União Europeia, estive 10 dias no Bangladesh, uma das zonas do globo mais atingidas pelo aquecimento global e pela consequente subida do nível do mar. Numa extensa viagem pelo país, vi milhares de pessoas a lutar diariamente contra a mãe natureza, que lhes alagava os campos de cultivo durante meses a fio, afundava aldeias inteiras, submergia centenas e centenas de quilómetros de terra e obrigava a viver, literalmente, no meio do mar durante grande parte do ano. Recordo a resiliência daquela gente que inovava como podia, construindo estruturas para elevar as suas habitações de madeira e palha um metro acima do chão, de modo a não ter de arrastar a família a cada seis meses em busca de um pedaço de terra firme; improvisando barcos para substituir os transportes terrestres; inventando novas formas de captar água potável ou procurando adaptar as suas culturas a zonas alagadas, de modo a poderem semear para sobreviver.

Lembro-me de acompanhar a comissária europeia do ambiente numa visita a uma fábrica de tijolos, umas das principais atividades económicas da região, e de no fim nos terem explicado que aquela unidade não laborava durante metade do ano porque ficava submergida pelas águas do rio.

Recordo a resiliência daquela gente que inovava como podia, construindo estruturas para elevar as suas habitações de madeira e palha um metro acima do chão, de modo a não ter de arrastar a família a cada seis meses em busca de um pedaço de terra firme; improvisando barcos para substituir os transportes terrestres; inventando novas formas de captar água potável ou procurando adaptar as suas culturas a zonas alagadas, de modo a poderem semear para sobreviver

Nessa viagem, viajámos quase sempre de barco, por largas extensões de água que nos diziam ter solo firme por baixo. Mas para um conjunto de jornalistas europeus que nunca tinham pisado aquela terra era difícil imaginar que não estávamos a navegar num rio ou gigante lago. Só quando avistávamos no meio do “mar” a chaminé de uma fábrica de tijolos conseguíamos adivinhar o que estava abaixo do nível das águas.

O contraste sentia-se na capital, Dakha, uma cidade com quase nove milhões de habitantes, muitos deles a viver em condições degradantes, atirados para as bermas das ruas ou compactados aos milhares em prédios por finalizar. Fugir para a cidade é um movimento natural e transversal a todas as populações mas aqui é sinónimo de miséria, de pobreza extrema, de fome e morte.

Levar os jornalistas aos locais onde se luta, não para travar as alterações climáticas mas para mitigar as suas devastadoras consequências, foi, em 2010, uma tentativa de chamar a atenção dos poderes políticos (e de cada um) para a necessidade de construirmos um mundo mais sustentável. Para invertermos um desenvolvimento económico fundado nos combustíveis fósseis e optarmos por uma economia mais limpa, capaz de nos fazer evoluir sem deixar para trás grande parte da população mundial. Como sempre, os mais frágeis.

Quase 10 anos depois, não deixa de me incomodar a forma como muitos ainda recusam confrontar-se com este problema e as suas trágicas evidências. Admito a contra-informação que circula num mundo movido por interesses poderosíssimos, marcado pelas fake news e pelas guerras de poder, mas insistir na tese do mito global sobre as alterações climáticas é, não só uma enorme irresponsabilidade, como uma tremenda injustiça e falta à verdade. Ouvir católicos a proclamar esta tese, ao mesmo tempo que ouvem o Papa Francisco clamar diariamente por uma ecologia integral que poupe os mais frágeis desta catástrofe, é algo que nem consigo classificar.

Ser crente num mundo sem esperança, e aparentemente à beira do colapso, é acreditar que Deus não desiste de nós e continua a atuar na nossa História mas que também conta connosco para esta missão de proteger os mais expostos às calamidades.

Se somos rápidos e solidários a doar dinheiro para mitigar uma calamidade em Moçambique, é pena que não consigamos abdicar de um pouco do nosso bem estar para consumir menos e de forma mais responsável. Sabemos despejar o armário para doar roupas para as vítimas dos incêndios, mas voltamos a enchê-lo com roupas novas que vêm do outro lado do mundo e são, quem sabe, fabricadas por crianças no Bangladesh. Mobilizamo-nos por boas causas, mas recusamo-nos a enfrentar as causas deste e de tantos outros problemas, que nos afectam aqui, agora, e que põem em causa a Criação. Ser crente num mundo sem esperança, e aparentemente à beira do colapso, é acreditar que Deus não desiste de nós e continua a atuar na nossa História mas que também conta connosco para esta missão de proteger os mais expostos às calamidades.

Por último, e 10 anos depois, resta dizer que já não precisamos de viajar para o outro lado do globo para sentir e perceber o que está aí à nossa porta. Dias quentes e secos, sempre com a seca à espreita, incêndios florestais devastadores e incontroláveis, terrenos agrícolas desertificados, zonas costeiras altamente susceptíveis à erosão, fenómenos climáticos extremos, etc. De volta ao início e a Guterres: o que será que ainda falta acontecer para nos mobilizarmos de vez por esta que deveria ser a batalha das nossas vidas?

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Banglaseh, 2010

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.