3 segredos sobre o Deserto

Jean-Marie Gustave Le Clézio dizia que “não há emoção maior do que entrar no deserto”. Gostaríamos de o levar até lá. Deixe-se ser tentado…

Jean-Marie Gustave Le Clézio dizia que “não há emoção maior do que entrar no deserto”. Gostaríamos de o levar até lá. Deixe-se ser tentado…

1. Como mel para a boca

Um som perfeito para recarregar baterias:

Ao ler o texto, ouça esta oração cantada por um coro melanésio, num arranjo do incomparável Hans Zimmer, no filme A Barreira Invisível (Thin Red Line), de Terrence Malick…


2. Um texto bíblico

Neste texto do livro de Oseias, Deus dirige-se ao povo, comparando-o a uma mulher infiel ao marido.

«É assim que a vou seduzir:
ao deserto a conduzirei, para lhe falar ao coração.
Dar-lhe-ei então as suas vinhas
e o vale de Acor será como porta de esperança.
Aí, ela responderá como no tempo da sua juventude,
como nos dias em que subiu da terra do Egipto.
Naquele dia – oráculo do SENHOR –
ela me chamará: «Meu marido»
e nunca mais: «Meu Baal*.»
Tirarei da sua boca os nomes de Baal,
de modo que tais nomes não voltem a ser recordados.
Farei em favor dela, naquele dia,
uma aliança com os animais selvagens,
com as aves do céu e com os répteis da terra;
farei desaparecer da terra o arco, a espada e a guerra,
e farei com que eles repousem em segurança.
Então, te desposarei para sempre;
desposar-te-ei conforme a justiça e o direito,
com amor e misericórdia.
Desposar-te-ei com fidelidade,
e tu conhecerás o SENHOR.»

Oseias 2, 16-22

* Divindade estrangeira a que rezavam as nações vizinhas de Israel.


3. O esclarecimento

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Deserto da Judeia, perto de Jerusalém, em direção a Jericó.

| #1 O simbolismo do deserto na Bíblia |

A Quaresma é frequentemente associada ao deserto. Porquê? Dura 40 dias, intervalo de tempo simbólico do deserto na história bíblica:

  • Depois da saída do Egipto e da passagem pelo Mar Vermelho, o povo eleito passou 40 anos no deserto antes de entrar na Terra Prometida.
  • Depois de ter sido batizado no rio Jordão, Jesus passou 40 dias em jejum no deserto.

Qual é então o sentido destas passagens no deserto?

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Nicolas Poussin (1594-1665), Passagem do Mar Vermelho (óleo sobre tela, 1633-1637), National Gallery of Victoria, Melbourne, Austrália.

| #2 O deserto como tempo de noivado |

No texto hebraico do profeta Oseias (que viveu há quase 28 séculos atrás), a permanência prolongada no deserto é apresentada como um tempo de noivado: «É assim que a vou seduzir: conduzi-la-ei ao deserto […] Então, te desposarei para sempre.»

O noivado é um período de transição que antecede o casamento. No antigo Israel antigo, dois assuntos eram discutidos entre o noivo e o pai da noiva: a data do casamento e o dote da noiva.

O período do deserto é, portanto, encarado como uma preparação para o casamento. Não se trata de suportar o calor deste lugar árido como um castigo; trata-se, antes, de um Deus que está à espera do seu povo como um noivo aguarda ansiosamente a sua futura esposa. O deserto é o tempo de espera e de preparação para um evento magnífico.

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Rembrandt (1606-1669), A Noiva Judia (óleo sobre tela, 1665-1669), Rijksmuseum, Amsterdão.

| #3 Uma palavra no deserto | 

Deus diz: «Conduzi-la-ei ao deserto e falhar-lhe-ei ao coração.»
Como sempre, o hebraico ajuda-nos a entender o sentido profundo do texto:

  • O substantivo hebraico para «deserto» é MiDBaR;
  • O verbo hebraico para «falar» é DiBbeR.

Como grandes especialistas do hebraico que nos estamos a tornar (!), reconhecemos uma espécie de jogo de palavras a que esta língua nos habitua: nas duas palavras ouvem-se as mesmas consoantes DBR. Quando Deus diz: «conduzi-la-ei ao deserto (MiDBaR) e falar-lhe-ei (DibBaRti) ao coração», dá-se uma espécie de eco.

Em hebraico, a palavra «deserto» assemelha-se ao termo «palavra». Muitos místicos reconheceram aqui um sinal para os tempos mais desafiantes, para as alturas de deserto das suas vidas: o tédio do deserto, apenas aparente, esconde secretamente uma palavra divina.

Para todos os que «vivemos a Quaresma», há aqui todo um programa: afinar o nosso coração, para tentar ouvir esta Palavra!

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Briton Rivière (1840-1920), Cristo no deserto (óleo sobre tela, 1898), Guildhall Art Gallery & London's Roman Amphitheatre, Londres.

4. E ainda uma palavra final…

No início da sua carreira na Aéropostale, Saint-Exupéry é nomeado chefe de escala no Cabo Juby, em Marrocos. Diante do deserto, aprende a meditar e a sua vida transforma-se. É provavelmente daqui que vem esta frase escrita mais tarde n’O Principezinho:

«Gostei sempre do deserto. Sentamo-nos sobre uma duna de areia. Não se vê nada. Não se ouve nada. E, no entanto, qualquer coisa brilha em silêncio…»

Antoine de Saint-Exupéry, O Principezinho,
trad. de Manuel Alberto, Relógio d’Água, 1995

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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