28 de março: um “wake up call”?

Não descurando o peso da perda de duas vidas, acreditamos que este caso pode abrir portas para a necessidade de investirmos nas condições de acolhimento e integração, em especial nas respostas de saúde mental para pessoas vulneráveis.

Não descurando o peso da perda de duas vidas, acreditamos que este caso pode abrir portas para a necessidade de investirmos nas condições de acolhimento e integração, em especial nas respostas de saúde mental para pessoas vulneráveis.

O dia 28 de março de 2023 vai ficar marcado pelos lamentáveis atos de violência praticados por um cidadão afegão, refugiado em Portugal, que vitimaram duas funcionárias do Centro Ismaili. Em primeiro lugar, reiteramos a nota de pesar aos familiares e amigos das vítimas, bem como a toda a comunidade ismaelita.

O que presenciámos no dia 28 de março foi um crime hediondo, mas é importante frisar que este ato isolado de nenhuma forma representa a comunidade muçulmana ou afegã, não devendo ser confundida a “parte pelo todo”. É sim representativo de uma vida como vítima de violação de direitos humanos, de falta de dignidade e, acima de tudo, de sofrimento vivido ao longo dos anos.

É importante compreender todos os desafios que as pessoas enfrentam durante o percurso migratório até chegar a Portugal. No caso concreto, a pessoa fugiu do Afeganistão, um país marcado pela violação sistemática de direitos humanos e perseguições de quem idealiza a Paz e Democracia, chegando ao ponto de fugir pelo seu pé com a sua mulher e filhos pequenos e de lhe parecer preferível fazer a travessia no Mar Mediterrâneo, tantas vezes apelidado como o maior cemitério a céu aberto da Europa. Mas acredite-se que a travessia por este cemitério era (e continua a ser, para muitos) preferível às sucessivas violações dos Direitos Humanos no Afeganistão, e a única que a Europa oferece a quem foge para salvar a sua vida.

Quando conseguiu chegar à Europa, por algum milagre com a sua família toda, foram colocados num campo de refugiados na Grécia, para iniciar a espera eterna até que um país europeu dissesse que os poderiam receber. Até lá, teve que permanecer fechado nesse campo de refugiados, em condições degradantes, tantas vezes noticiadas que já nem são notícia, durante anos. E teve que aí permanecer, mesmo após alegadamente a sua mulher ter morrido após um incêndio, até que um país da Europa dissesse que “sim”.

Portanto, a Europa falhou, e a seguir falhou Portugal.

O que presenciámos no dia 28 de março foi um crime hediondo, mas é importante frisar que este ato isolado de nenhuma forma representa a comunidade muçulmana ou afegã, não devendo ser confundida a “parte pelo todo”. É sim representativo de uma vida como vítima de violação de direitos humanos, de falta de dignidade e, acima de tudo, de sofrimento vivido ao longo dos anos.

Quando vieram para Portugal, já sem a sua mulher, foram-lhe ainda impostos obstáculos à integração, por parte de um país cujo único objetivo é promover a integração dele e da família. Por tudo o que este refugiado passou, deveria ter sido assinalado como um caso especialmente vulnerável, e acionadas as respostas sociais adequadas. Ao invés, os seus pedidos de ajuda não tiveram resposta. Tal como acontece com todos os outros refugiados, foi engolido por burocracia, desesperou pelos tempos de espera, e por não conseguir integrar-se. De notar que, no caso concreto, a pessoa tinha terminado o programa de acolhimento de 18 meses, sendo expectável que superasse todas estas dificuldades sem qualquer apoio da instituição de acolhimento.

Não descurando o peso da perda de duas vidas inocentes, acreditamos que este caso pode finalmente abrir portas para uma realidade não raras as vezes longínqua: a necessidade de investirmos nas condições de acolhimento e integração, em especial, nas respostas de saúde mental para as pessoas mais vulneráveis.

A este respeito, cremos ser fundamental partilhar a experiência do gabinete de saúde mental do JRS, e o apoio que este presta à população imigrante e refugiada. A necessidade de criarmos este gabinete advém não só da importância desta componente no acolhimento, mas também da constatação de que faltam psicólogos especializados na área das Migrações, algo que o SNS português não oferece. Note-se que, além da fraca preparação técnica, o acesso a apoios nesta área é gravemente afetado pela burocracia e tempos de espera, que poderão levar as pessoas a aguardarem mais de um ano por uma consulta. Para além do mais, o gabinete investiu na formação especializada de intérpretes nesta área, fundamentais para alcançar os resultados pretendidos com a intervenção.

Em suma, este triste episódio vem-nos recordar a importância de não fazermos generalizações precipitadas, e de conhecermos as dificuldades que as pessoas enfrentam, desde o momento em que partem do país de origem. Este acontecimento deve tocar a consciência de todos nós, como um “wake up call” para a necessidade de investirmos nas condições de acolhimento e integração de quem nos procura, e de prestarmos especial atenção ao contexto de vulnerabilidade em que as pessoas se encontram.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.