Como está a ser recebida a decisão do Tribunal Constitucional?
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A decisão tem tido o destaque esperado e merecido, atendendo à importância das questões em presença. Porventura, por se tratar de uma decisão extensa, densa e de difícil análise, não tem, no entanto, sido dada suficiente atenção à argumentação do Tribunal Constitucional (TC), especialmente na parte da decisão (capítulo D, nºs 23 a 33) em que o Tribunal considerou que a Constituição não proíbe em termos absolutos a regulação legal de situações de eutanásia.
Ora, as decisões do TC só podem ser compreendidas a partir das suas razões, em todas as suas nuances, e são essas que o futuro legislador nesta matéria terá de levar em consideração.
Nota: Todos os números e parágrafos indicados referem-se ao texto do Acórdão do TC.
O que diz o acórdão do TC sobre a possibilidade de uma lei que admita a eutanásia?
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O Tribunal considerou que “o legislador democrático não está impedido, por razões de constitucionalidade absolutas ou definitivas, de regular a antecipação da morte medicamente assistida” (nº 32, 5º §).
Explicitou nesse sentido, nomeadamente, que “se um paciente é considerado capaz de tomar a decisão de pôr fim à própria existência através da interrupção de tratamentos de suporte à vida, não se compreenderia por que razão já deveria ser sujeito a uma proteção contra a própria vontade, quando essa decisão depende da ajuda de terceiros de forma a proporcionar uma alternativa que o paciente considera mais digna face à interrupção desses tratamentos” (nº 32, 4º §). É que, acrescentou, “a proteção absoluta e sem exceções da vida humana não permite dar uma resposta satisfatória, pois tende a impor um sacrifício da autonomia individual contrário à dignidade da pessoa que sofre, convertendo o seu direito a viver num dever de cumprimento penoso” (nº 32, 5º §).
Nesta parte, a fundamentação da decisão foi firmada por uma maioria de 8 juízes (João Pedro Caupers, Pedro Machete, Joana Fernandes Costa, Mariana Canotilho, José João Abrantes, Assunção Raimundo, Fernando Vaz Ventura e Gonçalo Almeida Ribeiro) contra 4 (Maria José Rangel de Mesquita, Maria de Fátima Mata-Mouros, Lino Rodrigues Ribeiro e José António Teles Pereira).
Nota: Todos os números e parágrafos indicados referem-se ao texto do Acórdão do TC.
Que balizas são estabelecidas pelo TC a uma futura lei?
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O TC, com uma maioria diferente da referida na resposta anterior – para além de ter considerado inconstitucional uma norma em concreto, por não ser suficientemente determinada (esteve em causa o conceito “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”, relativamente ao qual o Tribunal considerou haver uma “manifesta insuficiência da densificação normativa da respetiva previsão legal”, tornando-o, por isso “inapto, por indeterminação, para disciplinar em termos previsíveis e controláveis as condutas dos seus destinatários” – nº 48) -, balizou estritamente a intervenção do legislador, seja quanto ao âmbito das situações de eutanásia admissíveis, seja quanto ao procedimento exigível.
Fê-lo – e não estando em causa nesta lei “a conduta isolada de alguém que quer pôr termo à própria vida, mas a assistência de profissionais de saúde, num quadro de atuação regulado e controlado pelo Estado, à antecipação da morte de uma pessoa a pedido desta” (nº 28, 9º §) – a partir da expressa exclusão, “por razões de defesa do bem vida e da própria liberdade-autonomia daquele que deseja a sua morte”, do “reconhecimento de um direito fundamental quanto à disponibilidade da sua própria vida fundado na autodeterminação do próprio” (nº 28, 10º §) – da expressa ausência de reconhecimento de um “hipotético direito fundamental a uma morte autodeterminada” (nº 28, 11º §) -, ou fundado no próprio direito à vida: “ao direito de viver (e, portanto, de não ser morto) não se contrapõe um direito a morrer ou a ser morto (por um terceiro ou com o apoio da autoridade pública), um direito a não viver ou um direito de escolha sobre continuar ou não a viver” (nº 28, 1º §).
Agora, a decisão e a sua fundamentação foram tomadas por uma maioria de 7 juízes (3 dos que admitiram a constitucionalidade da eutanásia – João Pedro Caupers, Pedro Machete e Joana Fernandes Costa – e os 4 que a afastaram: Maria José Rangel de Mesquita, Maria de Fátima Mata-Mouros, Lino Rodrigues Ribeiro e José António Teles Pereira) contra os restantes 5: Mariana Canotilho, José João Abrantes, Assunção Raimundo, Fernando Vaz Ventura e Gonçalo Almeida Ribeiro.
Nota: Todos os números e parágrafos indicados referem-se ao texto do Acórdão do TC.
Mas em que âmbito admite o TC a Eutanásia?
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Quanto ao âmbito, o TC limita a eutanásia aos casos em que “esteja em causa a dignidade de quem pretende (ser auxiliado a) morrer, isto é, a sua atuação como sujeito autorresponsável pelo seu próprio destino num momento já próximo do final” (nº 33, 4º §). Ou seja: aos “casos em que uma proibição absoluta da antecipação da morte com apoio de terceiros determinaria a redução da pessoa que pretende morrer, mas não consegue concretizar essa intenção sem ajuda, a um mero objeto de tratamentos verdadeiramente não desejados ou, em alternativa, a sua condenação a um sofrimento sem sentido face ao desfecho inevitável” (nº 33, 4º §).
Esclareceu ainda que essas situações deveriam ser determinadas, “como linha de princípio orientadora – como diretriz”, tendo em conta não estar em causa “uma escolha entre a vida e a morte, mas, mais rigorosamente, a possibilitação da escolha entre diferentes modos de morrer: nomeadamente, um processo de morte longo e sofrido versus uma morte rápida e tranquila” (nº 33, 5º §). Nesses casos, “em conformidade, e tendo em conta a inutilidade do sofrimento – ao menos da perspetiva de quem sofre – perante um desfecho certo, desde que verificado o pressuposto de uma decisão tomada em consciência, verdadeiramente livre de todas as pressões, e previamente informada do diagnóstico, do prognóstico e das alternativas disponíveis no domínio das terapias ou no âmbito dos cuidados paliativos, perde relevância saber quem detém o ‘domínio do facto’ no momento final, o mesmo é dizer … se o ato de antecipação da morte se concretiza por via da autoadministração (ajudada) ou da heteroadministração de fármacos letais” (nº 33, 5º §).
Nota: Todos os números e parágrafos indicados referem-se ao texto do Acórdão do TC.
E que indicações são dadas quanto ao procedimento e ao dever de promover a vida?
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Afirmando que “a antecipação da morte não deve ser banalizada nem normalizada” (nº 31, 4º §) – e que “do ponto de vista constitucional, a morte voluntária não é uma solução satisfatória e muito menos normal, pelo que não deve ser favorecida”; o que deve ser promovida “é antes a vida e a sua qualidade, até ao fim” (nº 33, 3º §) -, o TC sublinhou por mais de uma vez o dever de o Estado de direito democrático proteger e promover a vida humana, em relação à qual, afirmou, ele “não é neutro nem pode ser indiferente” (nº 30, 2º §; nº 33, 3º §): assim, em termos de procedimento, o legislador nesta matéria está obrigado a “adotar um sistema legal de proteção orientado para a vida” (nº 33, 3º §), já que “é seguro que na ordem constitucional portuguesa o apoio de terceiros à morte, mesmo que autodeterminada, não representa um interesse constitucional positivo”, salvo na presença das situações excecionais apontadas (nº 33, 4º §).
Nota: Todos os números e parágrafos indicados referem-se ao texto do Acórdão do TC.
E quão determinada deve ser a lei?
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Neste plano, o TC sustenta que “o dever de proteção da vida (e, bem assim, da autonomia) de quem pretende antecipar a sua morte por se encontrar doente, numa situação de grande sofrimento e sem perspetivas de recuperação, impõe uma disciplina rigorosa quanto às situações – os casos típicos – que justificam, segundo a opção legislativa, o acesso à morte medicamente assistida e garantias procedimentais robustas e adequadas a salvaguardar a liberdade e o esclarecimento do paciente e, outrossim, a assegurarem o controlo da verificação concreta dos casos previstos. Só desse modo se cumprem as exigências de certeza e de segurança jurídica próprias de um Estado de direito democrático, garantidoras de que a antecipação da morte medicamente assistida se contém dentro dos limites que a justificam constitucionalmente, face ao dever de proteção decorrente da inviolabilidade da vida humana: a salvaguarda do núcleo de autonomia inerente à dignidade de cada um, enquanto sujeito, ou seja, um ser autodeterminado e autorresponsável” (nº 33, 6º§).
Por isso, “as situações em que a antecipação da morte medicamente assistida é possível têm, por isso, de ser claras, antecipáveis e controláveis desde o momento em que aquela prática se encontre estabelecida normativamente, devendo o procedimento assegurar a determinabilidade controlável das inevitáveis indeterminações conceituais. Incumbe ao legislador, por esta via, prevenir a possibilidade de indesejáveis e imprevistas ‘rampas deslizantes’” (nº 33, 7º§). “O mérito do sistema legal de proteção deverá, assim, ser objeto de uma avaliação global, que considere as possibilidades de interação entre as condições materiais relativas ao paciente e sua condição e o procedimento, na sua vertente clínica e administrativa. Não é de descurar que o segundo, além das finalidades que lhe são próprias, também possa desempenhar uma função de compensação de insuficiências ao nível das primeiras” (nº 33, 8º§).
Este ponto terá sido unanimemente subscrito.
Nota: Todos os números e parágrafos indicados referem-se ao texto do Acórdão do TC.
Que espaço de manobra é, assim, dado ao Parlamento?
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A decisão está agora do lado do legislador que pretender legalizar situações de eutanásia, o qual, se bem se compreende a decisão do TC, estará limitado a fazê-lo quanto às situações de doença em que se perspetiva “um desfecho certo” e “inevitável” (ou seja, “num momento já próximo do final”), e estará vinculado a definir um procedimento para tal que represente adequadamente “um sistema legal de proteção orientado para a vida”.
Nota Editorial: Esta caixa de perguntas procura ajudar a entender o que diz o Acórdão do Tribunal Constitucional e não significa uma adesão ao conteúdo desse acórdão e menos ainda à aprovação de uma lei que permita a Eutanásia. Isso mesmo o dissemos no nosso último editorial:
“Seremos sempre contra essa lei e continuaremos determinados em propor um modo diferente de encarar a defesa da vida e da dignidade humanas. Contudo, parece-nos importante que partindo do acórdão haja clareza quanto aos limites a que essa lei estará sujeita para evitar que se molde um ambiente que permita a aprovação de uma lei que vá além desses limites.“