A pandemia Covid-19 representou uma mudança radical nas vidas de todos, e obrigou-nos a experienciar novas formas de fazer as coisas. Estas novas experiências, a par da privação de muitas das nossas vivências habituais, motivou um questionamento sobre o que realmente importa e uma reflexão profunda sobre a forma como vivemos as nossas vidas.
No caso das crianças e jovens, muitos experimentaram pela primeira vez a fadiga do digital, o que os levou a questionar o entusiasmo que as tecnologias e conteúdos digitais geralmente lhes suscitam.
Muitas vezes associados a jogos, música a conteúdos audiovisuais, os media digitais são uma grande fonte de entretenimento para os jovens, mas durante os períodos de confinamento, o excessivo tempo de ecrã, também motivado pelo ensino remoto de emergência, e a falta de atividades alternativas, acentuou um sentimento de aborrecimento. O funcionamento algorítmico de muitas plataformas digitais assenta numa lógica de ir ao encontro do comportamento online anterior, apresentando ou sugerindo conteúdos parecidos com outros com os quais cada utilizador já interagiu ou relativamente aos quais manifestou preferência. Este funcionamento reforça o sentimento de que as plataformas digitais, quando usadas com frequência e intensidade, se tornam redundantes, oferecem “mais do mesmo”, gerando aborrecimento e um sentimento de frustração radicado na constatação de que se poderia estar a fazer algo mais útil, mais agradável, ou mais satisfatório, com o tempo de que se está a despender frente ao ecrã.
Este período de uso excessivo tornou evidente para muitos jovens um “lado negro” das plataformas digitais, ajudou-os a refletir sobre o quanto estas podem ser “tóxicas”, por um lado, promovendo discursos de ódio e discriminatórios, e, por outro lado, promovendo a insatisfação através da incitação à publicação de conteúdos encenados, selecionados, manipulados digitalmente, filtrados, tudo em busca de uma perfeição inatingível.
Este período de uso excessivo tornou evidente para muitos jovens um “lado negro” das plataformas digitais, ajudou-os a refletir sobre o quanto estas podem ser “tóxicas”, por um lado, promovendo discursos de ódio e discriminatórios, e, por outro lado, promovendo a insatisfação através da incitação à publicação de conteúdos encenados, selecionados, manipulados digitalmente, filtrados, tudo em busca de uma perfeição inatingível.
Estas constatações e experiências têm conduzido muitos jovens à procura por um uso mais equilibrado e saudável dos media digitais. Recentemente, o bem-estar digital tem emergido como tendência relevante, não só entre jovens mas também noutras faixas etárias, e são várias as estratégias que podem conduzir a essa finalidade, desde uma desconexão mais radical até uma autorregulação apoiada por outras ferramentas digitais, como aplicações móveis, por exemplo.
É neste contexto que uma nova rede social está a ganhar destaque. Esta nova aplicação móvel surgiu em 2020, mas conta já com cerca de 20 milhões de utilizadores em todo o mundo, e é a nova favorita da Geração Z. A aplicação BeReal convida os utilizadores a serem mais autênticos e genuínos, não permitindo o uso de filtros ou qualquer tipo de manipulação digital das fotografias, e estimulando a captura espontânea de momentos. Contrastando fortemente com a busca do enquadramento mais atrativo e da posição mais favorável para uma fotografia perfeita, a BeReal envia uma notificação diariamente aos seus utilizadores, mas a uma hora aleatória, e estes têm dois minutos a partir da receção da notificação para tirarem uma dupla fotografia que capture, ao mesmo tempo, o que estão a fazer, e uma selfie. Só quem partilha as suas fotografias no prazo é que pode visualizar as fotografias dos outros utilizadores a quem está ligado. Esta aplicação promove, assim, o registo do dia a dia no formato de um diário fotográfico, e também a partilha dessas vivências entre amigos, reforçando o sentimento de pertença a uma comunidade. Além disso, ao permitir que cada utilizador só publique um conteúdo por dia, também previne a utilização excessiva, o que é uma abordagem inovadora relativamente às principais plataformas digitais da atualidade.
Os jovens sentem necessidade de estarem conectados uns aos outros, de estarem constantemente a par do que se passa no seu grupo de amigos, mas esses desejos contrastam com a tomada de consciência de que a utilização excessiva das redes sociais pode distorcer as perceções que vão formando do seu corpo, das suas férias, do seu estilo de vida, da forma como socializam, causando um descontentamento com o real face a expetativas irrealistas que estes media estimulam.
É interessante refletir sobre o que estará a levar os jovens a aderir a esta nova plataforma digital. E é também importante estudar a forma como se estão a apropriar dela. Algum trabalho de campo exploratório que já realizei sobre esta temática, com o objetivo de preparar um estudo mais sólido e aprofundado, revelou já dois insights importantes. Por um lado, a principal motivação para experimentar o BeReal é a sua proposta de autenticidade. Os jovens sentem necessidade de estarem conectados uns aos outros, de estarem constantemente a par do que se passa no seu grupo de amigos, mas esses desejos contrastam com a tomada de consciência de que a utilização excessiva das redes sociais pode distorcer as perceções que vão formando do seu corpo, das suas férias, do seu estilo de vida, da forma como socializam, causando um descontentamento com o real face a expetativas irrealistas que estes media estimulam. Reconhecendo toxicidade neste processo, sobretudo no Instagram, procuram alternativas viáveis que lhes proporcionem um maior bem-estar digital. Por outro lado, embora o discurso dos jovens vá neste sentido, as suas ações contrariam o que dizem, pois estão a apropriar-se desta nova aplicação encontrando formas de a subverter. Por exemplo, alguns jovens preferem fazer uma publicação tardia, o que implica que nesse dia não verão as publicações feitas pela sua rede de amigos, mas permite-lhes controlar qual o momento do seu dia que querem registar. Outros confessam que, nos dois minutos que têm, fazem várias tentativas até conseguirem um conjunto de fotos que consideram satisfatórias. Ou seja, não são assim tão espontâneos, e mantêm uma construção estratégica da sua representação digital.
Por enquanto, o BeReal é apenas uma tendência. Ainda não é claro o seu modelo de negócio, nem como a plataforma conseguirá manter o interesse dos utilizadores, tendo muito menos conteúdos do que as principais plataformas mais usadas pelos jovens, como o Instagram, o TikTok e o YouTube. Nos últimos anos, temos assistido a uma incorporação de elementos com sucesso em plataformas emergentes em redes mais consolidadas, como por exemplo a criação dos Reels do Instagram e dos Short Videos do YouTube como um mimetismo do TikTok, e à compra de plataformas emergentes por outras já estabelecidas. O Facebook, que foi a plataforma digital mais usada durante vários anos, está atualmente em queda. O panorama digital é fluído e dinâmico, e a verdadeira importância que o BeReal poderá vir a ter é, por ora, uma incógnita.
Mas é um bom tema para iniciar a reflexão e o debate sobre a forma como os jovens se estão a relacionar com os media digitais, de uma forma genérica, pois é mais uma evidência dessa tendência mais geral de busca de uma vida mais genuína, com propósito, e com um maior bem-estar. Constatar que alguns jovens estão a ser capazes de olhar para os seus comportamentos, de reconhecer que o uso excessivo de media digitais não lhes faz bem, e de procurar implementar nas suas vidas estratégias que lhes permitem autorregular ou alterar os seus comportamentos tendo em vista um maior bem-estar é motivo de admiração e de esperança. Compete aos adultos olhar para si próprios e refletir sobre que exemplo estão a dar aos jovens, e sobre como os podem apoiar nesta jornada.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.