A frase que serve de título a este texto é uma frase consagrada de Santo Inácio de Loiola, que se apresenta como síntese da sua espiritualidade, como meta do percurso dos Exercícios Espirituais e, porque não dizê-lo, como um “retrato” do próprio Inácio, visto por aqueles que o conheceram pessoalmente e por todos os que, ao longo dos tempos contactaram com a sua biografia e a sua herança espiritual.
Tal como todas as frases lapidares, esta também corre o risco de ficar registada como um bom pensamento ou uma aspiração à qual todos tendemos e desejamos, mas que não passa muito disso. Inácio foi, certamente, um homem de ideais, desde o início da sua conversão. Mas não se ficou por aí, perseguiu-os e deu-lhes consistência, fê-los realidade. Não como os teria inicialmente pensado, mas como foi achando que Deus lhe pedia em cada momento, no seu discernimento.
Por isso, também nós, inspirados por Inácio de Loiola, somos chamados à realidade do desejo e a operar continuamente no nosso quotidiano as dimensões espirituais da vida. Uma espiritualidade sem carne não é cristã, tal como não existe uma ressurreição sem cruz. Este é o segredo do olhar cristão: ver Deus em tudo, mesmo onde Ele está escondido, ver todas as coisas n’Ele, mesmo naquilo que aparentemente é miséria e pecado.
Ao olhar a realidade segundo este critério, não há nada no mundo que esteja fora do desejo que devemos ter de viver o Evangelho em cada momento, no mal, no sofrimento, nosso e dos outros, dos que estão perto e dos que estão longe. Dizer à partida que “isto não é para mim”, “não sei o que fazer”, “é uma realidade longe de nós”, é um modo disfarçado de comodismo, de conformismo, um cristianismo aburguesado a que nos habituámos. Não fiquemos pelos desejos, porque estes não fazem história, o que o faz são as coisas reais, que são muito mais pequenas do que grandes ideais, mas são essas que contam. O resto é conversa.
Fotografia de Arthur – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.