Nestes tempos pós-eleitorais muito se tem falado do perigo da normalização do Chega. É uma preocupação que subscrevo, não por considerar que o Chega seja um partido antidemocrático, mas pela sua visão iliberal da sociedade. Encontro no Chega um desprezo pelos princípios basilares do constitucionalismo-pluralista que o torna incompatível com aquilo que defendo. Que o torna “anti-o-meu-sistema.”
Muitos têm igualmente alertado para um outro perigo do nosso debate público: de que se resuma a – e se esgote em – discussões sobre o Chega, com o Chega ou ainda em torno da proximidade de outras forças políticas ao programa do Chega ou ao próprio partido. Numa qualquer legislatura, mas sobretudo numa de maioria absoluta, açambarcar desta forma o debate democrático seria prejudicial para a qualidade da nossa vida política.
Julgo que têm existido alguns enganos na forma como se tem combatido a normalização do Chega. Quem não quer normalizar, denuncia a toda a hora, açambarcando o debate. Quem quer evitar o açambarcamento, é acusado de normalizar. Estamos num beco sem saída e o cenário não parece famoso para quem está preocupado com a vida comunitária.
A quem propõe que se deixe de denunciar compulsivamente, acusa-se de cumplicidade, de “deixar passar” e normalizar. Afirmam que denunciar toda e qualquer transgressão é a melhor forma de defender a nossa integridade moral e de limitar o crescimento do Chega. Sobre este último ponto, está por provar que a estratégia da denúncia em catadupa tenha produzido resultados em alguma cabeça do mundo.
Tenho dúvidas de que a denúncia contínua seja a resposta para combater a normalização e construir o bem comum. Acho que, com o tempo, a denúncia obsessiva revela-se um enorme cúmplice, não das ideias da extrema-direita, mas do propósito de esvaziamento e destruição do sistema. Neste caso, de autodestruição do sistema e do bem comum.
Enquanto estivermos exclusivamente concentrados na denúncia dos outros, o sistema constitucional-pluralista, que prezamos e ao qual não podemos deixar de ignorar os sinais de fadiga, corrói-se paulatina e crescentemente. Até ao dia em que haja pouco para defender cá dentro e em que tenhamos perdido a capacidade de refletir publicamente. É um processo mais silencioso e discreto, mas igualmente ameaçador do sistema constitucional-pluralista.
A longo prazo, é na capacidade do sistema de se autorreconhecer, criticar e regenerar, que se decide o combate à normalidade do pensamento antissistema: se deixamos de ter uma alternativa válida para apresentar, então o movimento antissistema tem razão. E um sistema degenerado e oco, por melhor que seja na prática da denúncia, não serve como resposta. É uma questão de tempo até que a sua fachada caia e fique a nu como trocou a sua capacidade de anunciar pela atividade de denunciar.
Acho que, com o tempo, a denúncia obsessiva revela-se um enorme cúmplice, não das ideias da extrema-direita, mas do propósito de esvaziamento e destruição do sistema. Neste caso, de autodestruição do sistema e do bem comum.
Um debate público açambarcado por polémicas de fronteira, que supostamente “ameaçam” o sistema constitucional-pluralista, torna-se eventualmente incapaz de recuperar o seu conteúdo original e o grau de liberdade necessário para florescer. Perde o hábito do debate livre, consistente e plural. Passa a ser movido pelo combate a um inimigo e não mais por uma visão a construir. Os seus atores agem como defensores cegos do status quo, que o conservam a todo o custo, e perdem a capacidade de se colocar em causa. Concentram todas as forças a combater os que denunciam as falhas do sistema ou defendem outro sistema, ficando sem energia para reformar continuamente aquilo que os une e desejam implementar
A quem lhes propõe qualquer revisão ou reforma de si próprios, acusam de ser complacentes com os radicais, de estarem a ceder ou a “sair da toca”. Quando na verdade são eles que, fechados sobre si mesmos, se enfiaram numa trincheira sectária e intolerante. Perdem a capacidade de conceber que alguém, precisamente motivado pela sua dupla convicção democrática e liberal, decida baixar as armas da denúncia e dedicar-se a uma revisão do sistema, que procure escutar todos na procura de novas soluções.
Este fenómeno tem-se expandido mesmo entre alguns dos mais devotos democratas liberais, como uma espécie de escrúpulo. Seja motivado pelo medo de ser classificado pelos que estão à nossa volta de traidor ou cúmplice, seja por própria imposição moral, vamos perdendo a capacidade de raciocinar democraticamente, olhando como um todo para os desafios que enfrentamos e para a melhor forma de os ultrapassar. Criamos temas tabus, deixamos outros por responder. Tudo para que o antissistema não vença. Sem nos apercebermos de que estamos a ter um comportamento de esquecimento do sistema e, nesse sentido, também ele antissistema.
A alternativa é ter a nossa base bem assente, inegociável em determinados valores e princípios. A partir daí, debater sem escrúpulos, com coragem e criatividade, ciente de que se será acusado de cumplicidade de um lado e de cobardia do outro. Mais preocupados em construir uma visão com fundamentos sólidos e sujeitos a constante revisão, do que em defender a nossa ideia ou tribo. E, sobretudo, convictos de que temos as melhores ferramentas para construir um bem comum que inclua todos. Isso sim, seria ser fiel ao sistema.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.