Não quero chamar nomes ao verão! Ele apareceu, como habitualmente, sem ser indelicado e não se apresentou com falta de educação. Não foi grosseiro nem malcriado, não tem qualidade inferior ao de outros anos, nem parece ser mau, medíocre, reles ou vil. Até tem sido caloroso no trato (e muito!) como esperamos de um bom verão!
Ainda assim, este verão vai saltar fora da regra. Estão canceladas as saídas para muito longe e as missões em países distantes, não vamos ter muitos campos de férias, e os projetos de verão que envolviam crianças, idosos e muita outra gente serão reduzidos a pequenos apontamentos, ou transferidos para a esfera digital, como fizemos com tanta coisa, ao longo dos últimos meses.
Talvez gostássemos de um verão mais em grande, excecional, com muitos momentos altos que o tornassem inesquecível. Ou ainda mais, de um verão livre de incertezas em relação ao futuro, livre de fragilidades económicas e financeiras como as que estamos a viver, livre de pessoas infetadas, e de muitas mais afetadas, por esta doença que nos atormenta. A necessidade de desconfinar, de abraçar, de socializar, vive ainda cruzada com a obrigatoriedade de darmos passos seguros que não deitem tudo a perder e não ponham todos em risco.
Ainda assim, há muitas coisas que habitualmente fazemos neste tempo de verão que podemos continuar a fazer, de forma reinventada, nestas novas circunstâncias. Deixo cinco verbos conhecidos do verão, para fazermos o essencial de sempre de maneira renovada.
1. Acampar… ou o desafio da rotina e da fidelidade.
O acampamento é um sinal de que, ainda que sejamos peregrinos, não podemos ficar para sempre nómadas. Sempre foi importante para a humanidade o movimento de parar e de assentar tanto quanto a surpresa do caminhar.
Precisamos de prender estacas, de fidelidade e de constância, de rotina. Como escreveu Saint Exupéry, um rito “é o que faz com que cada dia seja diferente dos outros dias e uma hora diferente das outras horas”. Um verão de rotinas mudadas não significa um verão sem rotinas. Mesmo no meio do incógnito e do desconhecido é importante uma disciplina de vida.
Ordinário é a característica de uma coisa que acontece muitas vezes, que é constante, frequente, que se faz repetidamente, como aquelas orações que são comuns a todas as Missas. Mesmo que agora só consigas pensar a curto prazo e fazer pequenos sprints, é importante fixar passos pequenos e possíveis aos quais possas ser fiel. Navegar ao mesmo tempo que se faz o mapa, não é o mesmo que andar à deriva. Todos precisamos de pontos firmes e de lugares de referência.
Descansar é um ato de realismo em relação ao que somos e podemos.
2. Descansar… ou o desafio de entregar tudo nas mãos de Deus
Uma das coisas boas do verão, sobretudo para quem está de férias, é a possibilidade de descansar.
O descanso é fundamental na nossa vida. Ter tempo para descansar não é sinal de fraqueza, mas o reconhecimento sereno da nossa fragilidade e da nossa não omnipotência. Descansar é um ato de realismo em relação ao que somos e podemos.
Mesmo em férias, nem sempre é fácil parar para descansar. E às vezes até paramos, mas ainda assim não descansamos. Há cansaços mais profundos do que o cansaço físico, como o cansaço de parecermos algo que não somos, o cansaço do sem sentido, ou o cansaço de nos julgarmos como Atlas que quer levar sozinho o mundo às costas.
Descansar não é só não fazer nada, porque às vezes fazer nada também cansa. Descansar pode ser abrandar o ritmo, mas também pode ser fazer as coisas com sentido, fazer tudo com mais amor, fazer mais em conjunto e em equipa. Sem sentido, sem amor e sozinhos é tudo mais cansativo. O contrário descansa!
Para os crentes, o descanso também é uma questão de fé. Há um descansar com Deus e em Deus que precisamos de aprender. É o poder ir até Jesus, para descansar n’Ele (Mt 11, 28); é o viver na certeza de que o Senhor é um Pastor que nos leva a descansar em verdes prados e nos conduz por bons caminhos (Sl 22/23), que nem sempre dá o que queremos, mas que dá sempre o que, efetivamente, precisamos. Entregar tudo nas mãos de Deus, longe de nos demitir da vida, faz-nos viver sustentados e descansados numa força maior do que nós.
Muitas vezes ficamos na superfície, não vamos ao fundo, temos pouca interioridade e pouca profundidade.
3. Arrumar… ou o desafio da conversão
O verão é um tempo bom para limpezas e grandes arrumações, para cortes e despejos, materiais e espirituais.
Acumulamos, por vezes, bens repetidos e não absolutamente necessários. Há roupa que vive no nosso armário e nem um dia do ano fez companhia à nossa pele, há brinquedos espalhados pelo quarto das crianças que há muito tempo não são a sua companhia. O exercício da partilha é como um semear. Exige desprendimento, deixar ir, mas traz a alegria de uma liberdade fecunda, livra-nos da escravidão dos próprios bens e faz bem aos outros na sua necessidade.
Mas a arrumação pode ser interior. Este pode ser um bom tempo para reordenar prioridades, para rever a vida, para dar o primeiro passo e mudar hábitos maus. Nem sempre temos tempo para arrumações interiores.
4. Mergulhar… ou o desafio de ‘sair para dentro’
‘Sair para dentro’ não se trata de ‘ir para fora cá dentro’. ‘Sair para dentro’ é mergulhar em profundidade. É “levar Deus para as férias” e dar-lhe tempo, deixar que Ele percorra connosco todos os lugares do nosso ser e da nossa existência. Rezar mais, fazer um retiro, ler um bom romance, aprofundar uma área de interesse. Muitas vezes ficamos na superfície, não vamos ao fundo, temos pouca interioridade e pouca profundidade.
A vida renova-se quando os olhos se abrem em extensão e profundidade. Olhos velhos, vida velha. Olhos novos, vida nova. Precisamos de olhos com a extensão do mar aberto e profundo para contemplar a beleza da criação e o amor do Criador, o rosto dos outros, para nos olharmos ao espelho sem vaidade ou narcisismo e, justamente, descobrimos quem somos. Contemplar é a porta da profundidade e também da felicidade: “Felizes os vossos olhos porque vêem e os vossos ouvidos porque ouvem!” (Mt 13, 16).
5. Visitar… ou o desafio de ‘sair para fora’
O verão é ainda tempo de visitar. Visitar é um exercício de se pôr em viagem e em caminho. É o exercício da caridade e da missão, como a viveu Maria. O verão pode ser uma oportunidade para reavivar os laços de amor com Deus, mas também com os outros, sobretudo os mais vulneráveis e necessitados.
Pode-se ‘sair para fora’ sem sair de casa, porque aí habitam periferias que nos esperam.
Mas também se pode alargar as fronteiras dos lugares habituais em que vivemos para ir ao encontro dos que, na sua fragilidade, nos esperam. O impressionante é que, em todos os que visitamos, de mais perto ou de mais longe, está sempre Deus que nos visita!
Para este verão só há um verbo desaconselhado: o verbo reclamar.
A reclamação é uma “síndrome de vitimização que afeta o bom humor e a capacidade de resolver problemas”. Como seria bom se vivêssemos este verão, nas suas circunstâncias reais, sem reclamações, a procurar as melhores oportunidades e a desenvolver os nossos melhores recursos. Sem medo de um verão simples e essencial.
Este pode ser um verão (extra)ordinário!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.