Conta Carlos Vallés sj no seu livro “Vivendo Juntos” que um dia, após ouvir um jovem relatar as dificuldades por que passava o seu casamento, lhe respondeu que, no seu caso, a única solução era o divórcio. Perante a grande surpresa do jovem, Vallés clarificou em que consistiria tal divórcio: ele devia divorciar-se da mulher que tinha idealizado para se poder casar com a real.
Já várias vezes tenho ouvido esta tese que a maior parte dos casamentos que terminam não terminam por aquilo que está a acontecer no próprio casamento mas por aquilo que ele ou ela acham que devia estar a acontecer. Há pessoas que se casam a pensar que aquela relação irá preencher as suas carências afectivas ou responder à questão do sentido da sua vida. Há quem se case na esperança (inconsciente) de que a vida de casal seja sempre o seu porto de abrigo e a sua principal fonte de energia, sem perceberem que – nalgumas fases – a maior parte da sua energia terá de ser gasta precisamente a lutar pela sobrevivência do seu casamento. Tenho conhecido noivos que, no fundo, não acreditam que alguma vez possam vir a achar graça a outra pessoa que cruze o seu caminho… Verifico que a maioria dos casamentos que tenho acompanhado passam (pelo menos pontualmente) por alguma das situações que atrás descrevi e isso não significa – de modo algum – que sejam maus casamentos. Situações difíceis num casamento podem ser degraus para o seu crescimento mas expectativas demasiado idealistas podem fazer olhar essas dificuldades como o fim.
Não conheço quaisquer estudos que relacionem o fim dos casamentos com as suas idealizações mas parece-me óbvio que a maior ou menor felicidade que sentimos na vida tem muito a ver com a menor ou maior distância que separa a realidade das nossas expectativas. E recordo um director espiritual que tive há muitos anos e que dizia que “As expectativas conduzem sempre à desolação”. As expectativas, não a realidade.
E recordo um director espiritual que tive há muitos anos e que dizia que “As expectativas conduzem sempre à desolação”. As expectativas, não a realidade.
Mas então – pode alguém questionar – não é bom ter ideais? Havemos de nos atar à realidade do que é sem sonharmos o que ela pode vir a ser? Evidentemente que ter ideais não só é bom como é mesmo essencial. No entanto, há uma subtil diferença entre ideais e idealismos. Os ideais, se forem verdadeiros, são como luzes de um farol: estão lá longe, no infinito e orientam os nossos passos a partir do ponto em que nos encontramos. São libertadores e fazem crescer, porque são sempre possíveis. Os idealismos são fotografias idealizadas do futuro. Imaginamos cenários dourados e esperamos que a realidade venha a corresponder a essas fotografias. Por exemplo: se, no dia do seu casamento, alguém sonha em ter uma relação forte que cresça com as dificuldades e seja um ninho para crianças crescerem saudáveis, isso é um ideal. Mas se essa pessoa criou para si mesma uma fotografia de um casal de mãos dadas numa casa junto à praia ao por-do-sol com três crianças bem comportadas ao colo, dois rapazes e uma rapariga, isso é um idealismo. Os ideais são bons; os idealismos são maus. Os idealismos são normalmente frustrantes porque a realidade nunca corresponde a fotografias prévias. Até pode ser melhor mas será sempre diferente.
De alguma forma a realidade tem sempre razão. Pode corresponder ou não ao que sonhámos mas tem sempre razão. O problema nunca está na realidade mas na nossa cabeça, naquilo que achámos que a realidade deveria ser quando lá chegássemos. A conclusão é óbvia: não se pode ser feliz sem abraçar a realidade tal como ela é.
Para nós, cristãos, isto é mesmo uma exigência da nossa fé. Acreditamos que nada do que nos acontece aconteceria se Deus não o permitisse. “Até os cabelos da vossa cabeça estão contados! Não tenham medo!” (Lc 12, 7). Acreditamos que Deus fará com que aquilo que nos acontece seja exactamente o melhor para nós com a Sua Graça pois “tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus” (Rom 8, 28) e que – por mais difíceis que sejam as situações – “Deus nunca permitirá que sejamos tentados para além das nossas forças” (1 Cor 10, 13). Chegamos até ao ponto de dizer – diante de situações com que a vida nos confronta – que “é vontade de Deus”.
Dizer que “a realidade tem sempre razão”, ver nas circunstâncias a “vontade de Deus” não é um convite à resignação. O Cristianismo assenta numa utopia (o “Reino”) e seguir a Cristo é sempre aceitar trabalhar com Ele na mudança da realidade para a construção do Reino. É o anti-conformismo, a anti-resignação. “Não vos conformeis com este mundo”, escreveu S. Paulo (Rom 12, 2). Ou seja: o casamento pode ser melhor e lutarei para que seja melhor, se o mundo pode ser melhor lutarei para que assim aconteça. Dizer que “a realidade tem sempre razão” não é um convite à resignação nem um juízo moral sobre a realidade. É simplesmente reconhecer que o único ponto de partida para a mudança é o abraço da realidade, tal como ela é. Aliás “ninguém muda aquilo que não ama”. De novo, isto não é psicologia barata, é a lógica do “Mistério da Encarnação”: “Deus amou de tal modo o mundo que enviou o Seu Filho” (Jo 3, 16). Ao enviar o Seu Filho ao mundo, Deus não estava a dizer que o mundo era um lugar perfeito sem grandes injustiças a denunciar e combater. Ao enviar o Seu Filho ao mundo, Deus estava a mostrar-nos como se “salva” a realidade: começando por amá-la tal como ela é.
Dizer que “a realidade tem sempre razão” não é um convite à resignação nem um juízo moral sobre a realidade. É simplesmente reconhecer que o único ponto de partida para a mudança é o abraço da realidade, tal como ela é. Aliás “ninguém muda aquilo que não ama”.
Creio que tudo isto tem grandes e exigentes implicações práticas. Darei apenas alguns exemplos.
Por vezes lutamos anos seguidos por mudar determinada situação para acabar percebendo que quem tem de mudar somos nós mesmos, aprendendo a viver essa situação o melhor que conseguimos e a tirar partido dela para crescermos. Se calhar está tudo bem, faz parte do nosso crescimento; apenas nos habituámos a pensar que a situação estava errada.
Na acção pastoral da Igreja por vezes lastimamos que muitas pessoas não aproveitem do tanto que temos para lhes dar. Pensamos que isto se deve ao facto de essas pessoas não serem o que deviam ser: são comodistas, pensam pouco, são demasiado emocionais, pouco fiéis… (enfim, não são como “antes” as pessoas eram). Nós temos ofertas fantásticas, como belos cantos litúrgicos gregorianos ou conferências inteligentes sobre a verdade, mas queixamo-nos que, no fim, vêm sempre “os do costume”. Oscilamos entre o desânimo e a militância heróica. Só não fazemos o que seria importante fazer: perceber que é a estas pessoas concretas (eventualmente comodistas, superficiais e inconstantes) que Deus nos envia e pôr-nos a nós mesmos em questão quanto ao modo de lhes abrir a porta do Evangelho.
Também nas nossas relações pessoais por vezes há pessoas que tentamos convencer a mudar. Elas têm defeitos e nós conhecemo-los bem demais. (Embora já não nos seja tão fácil reconhecer os nossos porque, como aprendi do P. Roque Cabral sj, “Os defeitos são como os faróis dos carros à noite: só vemos os dos outros”). Mas uma vez li este poema que me vem sempre à cabeça:
MUDAR OU NÃO MUDAR
Fui neurótico durante anos
Cheio de ansiedades, depressões e egoísmos.
Todos me diziam que mudasse,
Eu ficava ressentido e ao mesmo tempo concordava,
e queria mudar, mas não conseguia,
por mais que tentasse.
O que mais me feria era o meu melhor amigo,
que, tal como os outros,
insistia que eu mudasse.
Mas, um dia, ele disse-me:
“Não mudes! Gosto de ti como tu és!”
Estas palavras foram música para os meus ouvidos,
esta frase do amigo: “Não mudes! Não mudes!
Não mudes… Gosto de ti como tu és!”
Então relaxei; voltei a viver. E então mudei!
Agora sei que não teria conseguido mudar até encontrar alguém que me amasse,
com ou sem mudança.
É assim que vós me amais, ó Deus?
(em Anthony de Mello, O Canto do Pássaro)
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.