George Floyd, cidadão estado-unidense negro, não ofereceu resistência quando a polícia de Minneapolis o abordou a 25 de maio. Tivesse ele resistido e tentado fugir, podia ter sido abatido pelas costas como Rayshard Brooks a 12 de junho. Foi algemado e depois imobilizado no chão, com o joelho esquerdo de um polícia branco, Derek Chauvin, sobre o pescoço durante 8 minutos e 46 segundos. Disse várias vezes que não conseguia respirar, tal como Eric Garner em 2014. Vários transeuntes apelaram para que aquele homem preso fosse ajudado. Nem Chauvin nem os outros três polícias responderam ao apelo. Floyd morreu assassinado.
Esta morte trágica somou-se a muitos outros crimes perpetrados por polícias contra os seus concidadãos negros desarmados. O número de mortos nestas circunstâncias é alarmante em termos relativos, dado que os afro-americanos são apenas 13,4% da população, de acordo com o Departamento do Censo dos Estados Unidos. Escravizados, segregados, marginalizados, continuam a ser mais pobres e mais explorados do que qualquer outra camada social. Têm ficado sempre por baixo.
Todas as vidas importam, é evidente, mas importa chorar e salvar aquelas a que “o pecado do racismo” nega a mesma importância e dignidade. Unidos em oração com o Papa Francisco, Mark Seitz, bispo da Diocese de El Paso, e outros católicos, ajoelharam-se para rezar no Parque Memorial desta cidade texana com cartazes que afirmavam “As Vidas Negras Importam” (“Black Lives Matter” ou BLM). Rezar pode ser um grito de protesto e uma exigência de mudança.
Eis a verdade incómoda: é inimaginável que um homem branco já algemado fosse sujeito à mesma humilhação e não fosse ajudado ao pedir socorro — a não ser se fosse visto como ralé. Aqui, como noutros episódios racistas, há um ser humano que sente e pensa diminuído a um mero corpo que reage.
Eis a verdade incómoda: é inimaginável que um homem branco já algemado fosse sujeito à mesma humilhação e não fosse ajudado ao pedir socorro — a não ser que fosse visto como ralé. Aqui, como noutros episódios racistas, há um ser humano que sente e pensa diminuído a um mero corpo que reage. O racismo corresponde à desumanização através do exercício do poder, alicerçado em injustiças sociais historicamente enraizadas que ligam o passado ao presente. A grande mobilização popular contra a violência racista nos EUA pede a nossa solidariedade e lembra que “A paz será obra da justiça” (Is 32,17). A chamada ao pensamento e à ação do Papa Paulo VI confirmou-o: “Se queres a paz, trabalha pela justiça”.
Jesus Cristo chama toda a humanidade, sem exceções, à justiça baseada no amor ao próximo, ao reconhecimento da igualdade, à prática da partilha, à sagrada comunhão. Como disse D. José Ornelas, bispo de Setúbal, recentemente eleito presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, com este caso muito vivo na consciência: “A Eucaristia é a expressão do sonho de Deus de fazer chegar a toda a humanidade o pão da dignidade, da solidariedade e da vida e o vinho da generosidade, da alegria, do amor. Não se pode participar na Eucaristia e ser racista, não se pode partilhar o pão de Deus e dizer a um irmão que se senta ao meu lado ‘vai para a tua terra!'”
Sempre houve cristãos ausentes ou hesitantes perante a opressão que separa a humanidade dela mesma. Qualquer assobio parece-lhes um ato divisivo, adotando o discurso de quem quer manter as relações sociais de discriminação e exclusão essencialmente intactas. Como se calar, ignorar, não denunciar, não combater, nem sequer mencionar um problema, o fizesse miraculosamente desaparecer. Jesus não teve esses pruridos, o que lhe valeu não poucos inimigos. A história da Igreja também é feita de quem teve a coragem de levantar a voz no tempo certo, com a força do Evangelho, como as irmãs dominicanas na cidade de Springfield, Illinois.
Elas têm defendido que não sermos racistas é insuficiente. É indispensável sermos anti-racistas, porque é urgente “desmantelar o racismo”, como elas anunciam. Apoiando-se na Doutrina Social da Igreja, promovem “relações mútuas baseadas no respeito, igualdade e justiça”, examinam e redefinem “a sua vida, missão, e ministério para incorporar e testemunhar o anti-racismo”, e comprometem-se a trabalhar em prol de um “mundo inclusivo”. A irmã Marcelline Koch distingue o preconceito racial do racismo, porque o segundo é “apoiado por estruturas institucionais projectadas para privilegiar o grupo com poder social e privar de direitos quem não o tem”. Não faz sentido descrever um país ou um povo como racistas. Desmantelar o racismo é alterar as condições históricas que dão um caráter racial a relações económicas e sociais incompatíveis com o bem comum.
Há diferenças entre os EUA e Portugal que não admitem colagens na análise nem imitações no ativismo. Seja como for, o problema do racismo em Portugal não pode ser apagado ou sequer menorizado. Vários casos têm tido visibilidade pública, nomeadamente aqueles que envolveram violência policial.
Há diferenças entre os EUA e Portugal que não admitem colagens na análise nem imitações no ativismo. Seja como for, o problema do racismo em Portugal não pode ser apagado ou sequer menorizado. Vários casos têm tido visibilidade pública, nomeadamente aqueles que envolveram violência policial. Numa democracia, as forças e serviços de segurança devem ser os primeiros a investigar qualquer indício de racismo e xenofobia nas suas fileiras. Estes atos surgem num contexto, emergem do passado de domínio colonial, da estratificação social, da pobreza persistente, enfim, da divisão em classes.
No entanto, a definição do contexto fica incompleta se não incluir a revolução democrática e nacional iniciada a 25 de Abril de 1974, com um cunho estruturalmente anti-colonial e anti-racista. A Constituição aprovada em 1976 expressou na lei essa concepção humanista e progressista, mas entre a lei e a vida há ainda um abismo a superar. A luta anti-racista fortalece e desenvolve as nossas instituições democráticas e o avanço no progresso social. Sobretudo num tempo em que populistas de extrema-direita agridem estes alicerces com discursos e propostas, por exemplo, contra a comunidade cigana.
Em Portugal, muitos imigrantes e cidadãos nacionais são discriminados por causa da cor de pele, nacionalidade, etnia ou religião. Não estão integrados, são marginalizados, têm limitadíssimas opções de vida, e constituem a camada da população mais atingida pela crescente precarização laboral e pelas assimetrias sociais. No setor da construção civil, os sindicatos da CGTP-IN têm combatido uma realidade indesmentível de xenofobia e racismo. Intervêm para assegurar que estes trabalhadores usufruem dos mesmos direitos salariais, contratuais, e de saúde e segurança que os seus colegas, e lutam lado a lado pela melhoria das condições de trabalho de todos. Uma sociedade mais justa, livre, e fraterna, só pode ser construída através deste esforço comum de humanização, dignificação, e união.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.