A história pessoal de Inácio de Loiola é um verdadeiro testemunho da sua intensa vida espiritual. Também a história pessoal de Mario Bergoglio, companheiro de Inácio de Loiola, mais tarde Papa Francisco, é para todos nós e para o mundo um testemunho de uma espiritualidade fecunda. A nossa reflexão partirá da Autobiografia de Inácio de Loiola e depois debruçar-nos-emos sobre a Autobiografia do Papa Francisco.
I. A Autobiografia de Inácio de Loiola (1491-1556)
Os companheiros mais chegados a Inácio de Loiola insistiam com ele para que narrasse a sua história, pois constituiria um testemunho importante da espiritualidade plasmada nos Exercícios Espirituais e nas Constituições da Companhia de Jesus. O processo de escrita foi mediado pelo jesuíta madeirense Luís Gonçalves da Câmara, que foi escolhido para ser confidente. Entre outras qualidades, teria certamente uma memória extraordinária. Nos últimos anos, entre 1553 e 1555, Inácio de Loiola narrou-lhe a sua história [nota 1].
Depois dos Exercícios Espirituais, a Autobiografia constitui o texto mais importante da espiritualidade inaciana. Trata-se de um texto conciso e espontâneo, onde Inácio não se coíbe de narrar o modo como Deus o foi conduzindo. Há toda uma série de ardis e tentações em que incorre, mas que, pela graça de Deus, tudo isso vem a reverter em seu favor (Rm 8, 28). Inácio é fiel à espiritualidade da Igreja. No entanto, a experiência de Deus feita na primeira pessoa, confere a este relato uma autoridade acrescida. A Autobiografia esteve retida nos arquivos durante vários séculos. Em vez deste escrito, circularam hagiografias perfeitas segundo os cânones do tempo. A Autobiografia começou a ser divulgada nos anos trinta e, sobretudo, nos anos oitenta do século passado [nota 2].
Ao longo da Autobiografia, podemos constatar que o que conduz Inácio não são veleidades pessoais nem indecisões. Inácio cede e persegue o desejo profundo de acertar com a vontade de Deus. É Deus quem conduz o processo. É Deus quem elege. A Inácio cabe-lhe corresponder. Trata-se de uma mística da tomada de decisão no seu sentido mais nobre. Inácio está profundamente empenhado em saber qual seria a vontade de Deus, quer a título pessoal, quer naquilo que concerne à Companhia de Jesus nascente. A Autobiografia decorre entre dois marcos: num extremo, a conversão do pecador militar, com trinta anos, gravemente ferido em combate; no outro extremo, os últimos dezasseis anos de vida, durante os quais confessava ter uma grande facilidade em encontrar a Deus nos mais variados âmbitos da sua vida quotidiana. É nesta última fase que assume a missão de primeiro Padre Geral da Companhia de Jesus.
A experiência completa dos Exercícios Espirituais, em cerca de trinta dias, retoma a experiência de conversão de Inácio e a determinação em discernir e acertar com a vontade de Deus. Os Exercícios Espirituais têm como foco, por um lado, uma crescente configuração com o Jesus terreno que, paradoxalmente, devolve o exercitante a si mesmo, no que tem de único e irrepetível e, por outro lado, o exercitante procura acertar as suas decisões com o chamamento que Jesus lhe dirige, ou seja, a “Eleição de estado de vida e a Reforma de vida” segundo a linguagem de Inácio de Loiola.
II. A Autobiografia do Papa Francisco (1936-2025)
As livrarias foram invadidas de muitos livros supostamente da autoria do Papa Francisco. No entanto, e na melhor das hipóteses, eram livros nos quais ele teria algum tipo de colaboração. De facto, seria pouco provável que o Papa tivesse escrito todos os livros que lhe são atribuídos. Contudo, a chamada Autobiografia do Papa [nota 3] tem um cunho oficial e merece um destaque especial. Este livro toca uma certa confidencialidade e, até por isso, estava previsto que só fosse publicada após a morte do Papa. Contudo, e também em virtude do atual Jubileu dedicado à esperança, o Papa Francisco decidiu antecipar a sua publicação. A Autobiografia foi escrita ao longo de seis anos [nota 4]. O Papa Francisco cativou imensa gente fora do âmbito restrito da Igreja católica, cativou pessoas de outras Igrejas e comunidades eclesiais, de outras religiões e mesmo não crentes.
Mario Bergoglio nasceu numa família modesta, filho de emigrantes italianos. Técnico químico de formação, entrou primeiro no seminário diocesano e posteriormente, em 1958, na Companhia de Jesus. Embora não tendo formação específica, de 1964 a 1966 ensinou literatura e psicologia [nota 5]. Foi ordenado sacerdote em 1969. Em 1971, tem um grave problema de saúde, tendo-lhe sido removido parte de um pulmão. Sensibilizado com o drama de Hiroshima, e com o testemunho de Pedro Arrupe SJ, ofereceu-se para ser missionário no Japão, mas a sua saúde não lho permitiu. Fez a profissão perpétua na Companhia de Jesus em 1973; de 1973 a 1979 foi Provincial, tendo parte deste mandato decorrido durante a ditadura militar na Argentina (1976-1983), caracterizada por uma violenta repressão. Em 1986 parte para a Alemanha, onde fez um doutoramento em teologia, sobre Romano Guardini.
Em 1992 foi nomeado bispo, tendo como lema “Miserando atque eligendo” (“Com misericórdia, [Jesus] o escolheu”) e no seu brasão inseriu o cristograma IHS, símbolo da Companhia de Jesus. Em 1998, tornou-se o arcebispo primaz da Argentina e em 2001 foi criado cardeal. Enquanto bispo “sublinha de modo particular a «missão profética do bispo», o seu «ser profeta de justiça», o seu dever de «pregar incessantemente» a doutrina social da Igreja, mas também de «expressar um juízo autêntico em matéria de fé e de moral».[nota 6] O Papa Francisco procurou conjugar estes dois aspetos que habitualmente costumam aparecer dissociados: o primeiro está conotado com uma Igreja mais progressista e o segundo com uma Igreja mais conservadora.
O discernimento está muito presente nas principais encruzilhadas da sua vida: em 1953, a par de alguns namoricos, sente a vocação ao sacerdócio [nota 7]; em 1955, obtém o diploma de fim de curso [nota 8]. Em 1957, percebe que o seu chamamento não é ao sacerdócio diocesano, mas à vida religiosa [nota 9]. A escolha da Companhia de Jesus deve-se aos seguintes fatores: a comunidade, o carácter missionário e a disciplina [nota 10]. Em 1973, é eleito Provincial dos jesuítas da Argentina; em 1986, inicia o doutoramento em teologia; em 1992, no contexto de uma Companhia de Jesus ainda profundamente ferida devido ao período de ditadura militar, recebe a Ordenação episcopal; e em 2013, como resultado do sonho de uma Igreja “em saída” [nota 11], que partilha no contexto da Congregação Geral de Cardeais que antecede o Conclave, é eleito Papa.
O seu pontificado foi marcado por luzes e sombras da Igreja, em particular, e do mundo em geral. Assim, em 2015 publica a encíclica Laudato Si’- Sobre o Cuidado da Casa Comum; em 2018, a crise associada ao escândalo da pedofilia na Igreja abala-o profundamente; em 2019, a pandemia de COVID vem alterar todas as relações humanas e sociais, tocando profundamente a Igreja; em 2020 publica a encíclica Fratelli Tutti, Sobre a Fraternidade e a Amizade Social; em 2022, a crise associada à guerra russo-ucraniana; em 2023, a crise associada à guerra entre Israel e Palestina; em 2024, o Sínodo dos Bispos “Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação, missão”; e em 2025, o Ano Jubilar “A esperança não engana”.
Impressiona o modo como o Papa Francisco viveu intensamente a Páscoa de 2025 para vir a morrer precisamente no dia seguinte. Pouco antes, tinha estado internado 37 dias. Ainda debilitado, terá talvez sentido a proximidade da irmã morte, que o leva a dar-se totalmente até ao último suspiro. São ainda da autoria do Papa Francisco: a Via-Sacra no Coliseu, na Sexta-feira Santa de 2025; a homilia da Vigília Pascal, na Noite Santa; a homilia do Domingo de Páscoa da Ressurreição do Senhor. No final desta celebração, adivinhando o fim que se aproximava, o Papa deu a bênção Urbi et Orbi e imediatamente a seguir percorreu no papamóvel a Praça de S. Pedro para a abraçar e se despedir da multidão ali reunida!
Estabelecendo um paralelo entre a Autobiografia de Inácio de Loiola e a Autobiografia do Papa Francisco, podemos dizer que em ambas está implícito o “Princípio e Fundamento”, dos Exercícios Espirituais: O ser humano é criado para amar e servir a Deus nosso Senhor e, mediante isto, salvar a sua pessoa. É descentrando-se em favor de Deus e do seu projeto que cada ser humano é plenamente ele próprio. A intencionalidade teológica (“o ser humano é criado para…”) funciona como casualidade final, já que o ser humano não é determinado exclusivamente pelas leis da natureza, pois é criado em vista da comunhão com Deus. Esta definição do ser humano, enquanto processo aberto à comunhão com Deus, rasga um horizonte de sentido e de esperança. Centrado na relação com Cristo, o “Princípio e Fundamento” constitui, assim, a chave de leitura da Autobiografia do Papa. Foi conjugando o “discernimento” com o “Princípio e Fundamento” que o Papa Francisco foi aferindo o rumo a imprimir à sua Autobiografia.
Centrado na relação com Cristo, o “Princípio e Fundamento” constitui, assim, a chave de leitura da Autobiografia do Papa. Foi conjugando o “discernimento” com o “Princípio e Fundamento” que o Papa Francisco foi aferindo o rumo a imprimir à sua Autobiografia.
Neste livro encontramos uma profusão de imagens e ideias para ilustrar a intencionalidade associada à esperança que rasga sucessivamente um horizonte de crescente plenitude, prefigurando o final dos tempos: “o futuro entra em nós, para transformar-se em nós, muito antes de acontecer” (Rainer Maria Rilke) [nota 12]; “tudo nasce para florir numa eterna primavera” [nota 13]; “possa o homem levar a cumprir a promessa da criança que foi” (F. Hölderlin) [nota 14]; “a tradição não é o culto das cinzas, mas a guarda do fogo” (Gustav Mahler) [nota 15]; “como o ramo da amendoeira, tal como o profeta Jeremias o define, aquele que na primavera floresce primeiro” (Jr 1, 11)16; “com saudades do futuro” (F. Pessoa) [nota 17]; mas sobretudo “a esperança é uma menina insignificante que avança no meio das suas irmãs mais velhas (a fé e a caridade) e, no entanto, é a esperança que empurra tudo para a frente, pois a fé não vê senão aquilo que é, e ela vê aquilo que será; e a caridade não ama senão aquilo que é, e ela ama aquilo que será.” (Charles Péguy) [nota 18].
Concluímos com a citação de A. Zarri, feita pelo Papa Francisco, no final da homilia do Domingo de Páscoa, dia anterior à sua morte, que testemunha o milagre que é a vida e que ele mesmo nos anunciou até ao fim do seu pontificado: “Senhor, nesta festa, pedimos-vos este dom: que também nós sejamos novos para viver esta perene novidade. Afastai de nós, ó Deus, a poeira triste da rotina, do cansaço e do desencanto; dai-nos a alegria de acordar, a cada manhã, com os olhos maravilhados, para ver as cores inéditas daquele amanhecer, único e diferente de todos os outros. […] Tudo é novo, Senhor, e nada repetido, nada envelhecido” [nota 19].
Nota 1 – Josep Mª Rambla SJ, ”Autobiografia”, in Diccionario de Espiritualidad Ignaciana, editoras Mensajero e
Sal Terrae, Bilbao e Santander, 2007, pp. 197-201
Nota 2 – Josep Mª Rambla SJ, ”Autobiografia”, op. cit.
Nota 3 – Papa Francisco, Esperança, A autobiografia, Ed. Nascente 2025. Uma pequena nota final esclarece que
Carlo Musso é coautor (cfr. pp. 349-350).
Nota 4 – Vatican News, 14 January 2025, “Pope Francis’ autobiography ‘Hope’ hits bookshelves in 80 countries”.
A publicação da Autobiografia já havia sido noticiada em Vatican News, 17 December 2024, “Pope:
Faith is not the opium of the people, but encounter and service”.
Nota – 5 www.vatican.va, “biografia Francisco”. Papa Francisco, Esperança, A autobiografia, pp. 189 e 197.
Nota 6 – www.vatican.va, “biografia Francisco”.
Nota 7 – Papa Francisco, Esperança, A autobiografia, pp. 134-135, 140.
Nota 8 – Papa Francisco, op. cit., p. 163.
Nota 9 – Papa Francisco, op. cit., p. 171.Nota 10 – Papa Francisco, op. cit., p. 173.
Nota 11 – Papa Francisco, op. cit., pp. 225-227. Cfr. Papa Francisco, exortação apostólica Evangelho da Alegria,
2013, “Uma Igreja em saída”, nº 20-23.
Nota 12 – Papa Francisco, op. cit.,, p. 5 (Epígrafe).
Nota 13 – Papa Francisco, op. cit.,, p. 10 (Introdução).
Nota 14 – Papa Francisco, op. cit.,, p. 97.
Nota 15 – Papa Francisco, op. cit.,, pp. 118 e 349.
Nota 16 – Papa Francisco, op. cit.,, p. 141.
Nota 17 – Papa Francisco, op. cit.,, p. 321.
Nota 18 – Papa Francisco, op. cit., pp. 303-304, mas também 186, 306, 307, 317.
Nota 19 – Homilia do Papa Francisco, Praça São Pedro, Domingo de Páscoa, 20 de abril de 2025, www.vatican.va
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.