Qual será a característica mais nuclear de uma pessoa que diz ter vocação para ser professor, para ser um educador? …
Recordo-me de um grande professor que tive quando estudei Ciências da Educação, dos tais professores que nunca esquecemos para o resto da nossa vida. Não são muitos aqueles “que nos ficam”, mas os que recordo são aqueles que me fizeram pensar e me deram critérios para poder ser mais, poder discernir e optar sempre pelo bem. Muitos me ensinaram muitas coisas que me serviram e servem tanto, mas os que mais sinto no coração são os que, além do saber, me trouxeram, mais coração, a sabedoria, os princípios para eu “trabalhar” a minha liberdade e viver uma vida no bem e para o bem. Quando fico inquieto, com dúvidas ou triste pelo meu agir, “vou” muitas vezes lá atrás na minha vida e sei que “por trás” dela estão pessoas que por mim “lutaram”: os meus professores, a começar por Deus e por meus pais.
O tal professor chamava-se Herbert Franta. Deu a última aula do curso já com muita dificuldade, e seguiu nesse dia para o Hospital, falecendo poucos dias depois. Marcou-me o que disse numa das suas últimas aulas, não recordo se na última, e que nunca mais esquecerei: «Nós aqui falámos e refletimos sobre coisas muito interessantes… Todavia, uma mãe, ainda que inculta ou ignorante, com o seu amor, educa infinitamente melhor que qualquer teórico da educação». Era um dos mais respeitados académicos da Faculdade e, numa frase simples, resumiu o muito que estudou, investigou e escreveu… Pressentiu que a sua morte se aproximava a passos muito largos e rápidos. E como o “sentido da morte” nos faz mais acutilantes e profundos na leitura da realidade e da vida, libertando-nos da tentação de relativizarmos o Absoluto e absolutizarmos o relativo, sempre acreditei – e já lá vão muitos anos – que ele quis deixar aquela mensagem final aos seus alunos como uma espécie de “testemunho” e “testamento final”.
Vários séculos antes, Inácio de Loyola pensava, e exigia aos seus seguidores jesuítas no mundo da educação, a vivência deste princípio como ponto de partida para que a educação seja o que se pretende: algo onde o sagrado vive! O amor nunca pode ser separado de uma relação com o divino. Por isso, nesta perspetiva, a educação é vocação divina.
Como concretizar, numa relação educativa escolar, este amor? Os Exercícios Espirituais, as Constituições e a Ratio Studiorum deixam-nos alguns “princípios” a ter em conta:
1. Cura personalis, ou atendimento personalizado. Tendo em conta as circunstâncias, os tempos e os lugares (princípio da adaptação), o Educador cultiva uma relação pessoal e amiga, numa entrega, disponibilidade e interesse “desinteressado”, mortificado e abnegado a cada Aluno, ajudando-o a fazer da verdade o seu modo de ser e de estar na vida. A “uniformidade” não faz parte da criação de Deus. Um Aluno não é número: tem nome e o professor deve-o conhecer e pronunciar.
2. A educação é um serviço cujo centro é o Aluno. Ensinar não pode ser “palco” para o professor procurar a sua glória através da exibição do seu saber. O saber do professor deve ser “adaptado” à capacidade de assimilação do Aluno. Como diz Charmot, a ciência indigesta faz mais mal do que a preguiça intelectual.
3. Coerência de vida. É esta a base para um exercício legítimo e moral da autoridade (com respeito, estima e amor reverencial pelo Aluno) por parte do Educador. As palavras comovem, mas o exemplo arrasta – diz o nosso povo. O modo de o Educador ver e viver o mundo e a vida devem ser atraentes para o Aluno (Kolvenbach). É por isso que educar é mais que transmitir conhecimentos, e mais que instruir. O Educador, além de profissional competente, deve apontar para a perfeição, i.e., a santificação da sua vida.
Se o espírito dos Exercícios Espirituais está nas Constituições da Companhia de Jesus e na Ratio, tentemos, através das qualidades referidas nas Constituições para o jesuíta “ideal” (Prepósito Geral), encontrar algumas características que, mutatis mutandis, devem acompanhar o Educador de uma instituição educativa da Companhia de Jesus.
Deve ser alguém com grande união e familiaridade com Deus, na oração e em toda a sua atividade; ter coração universal e a todos ajudar pelo exemplo e pela virtude. De forma especial, nele deve resplandecer a caridade, assim como uma verdadeira humildade, que o tornem amável para com Deus e os homens. Há-de ser livre de todas as paixões, tendo-as dominadas e mortificadas, para que lhe não perturbem o juízo da razão. Exteriormente, deve ser senhor de si, edificante e circunspecto no falar, de forma que todos o tomem por espelho e modelo; deve fundir bem a necessária retidão e severidade com a benignidade e a mansidão; sem deixar de ser compassivo, nunca se deve deixar dobrar quando julgar algo mais agradável a Deus Nosso Senhor. A retidão e a caridade sejam as suas “armas”; deve ser magnânimo de alma e com fortaleza para suportar as fraquezas alheias e empreender grandes coisas no serviço de Deus Nosso Senhor, nelas perseverando com constância.
Nas contradições, não pode perder a coragem nem deixar-se demover do que exige a razão e o divino serviço; não se deixará exaltar pelo sucesso, nem deprimir pela adversidade; deve ser dotado de grande inteligência e juízo, para que lhe não falte o talento nas questões especulativas nem nas questões práticas. Ciência, prudência e experiência, são qualidades que o devem acompanhar; deve ser vigilante e cuidadoso para empreender tarefas e projetos, e enérgico para os levar a cabo com perfeição, sem negligências nem fraquezas que o levem a deixar imperfeito e por acabar a obra começada; deve mostrar dignidade e autoridade e ter cuidado em dosear o trabalho com o descanso, a fim de lhe não faltarem as forças físicas; deve ser dotado de estima, bom nome e tudo o que favoreça a autoridade, e fazer por ser o mais eminente em todas as virtudes e merecimentos na comunidade educativa. Se lhe faltarem algumas das qualidades acima mencionadas, que lhe não falte ao menos uma grande bondade, amor ao Aluno e juízo reto com competência científica.
Ser professor é, por isso, em primeiro lugar, uma vocação, não uma profissão. O Professor é aquele que, com o seu exemplo e vida, prepara alunos para optarem incondicionalmente e viverem, em primeiro lugar, o bem no mundo. Mais do que revolucionar o mundo, o Professor prepara cada aluno para se revolucionar a si próprio. Há quem fique na História porque conquistou muitos impérios à custa de muitas vidas, e quem fique na História porque, à custa da sua vida e do seu exemplo, uniu muitas vidas e criou muitas outras. É este o caso do Professor.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.