Numa aula de psicologia, durante o secundário, o professor afirmou que as pessoas somente podem sentir as emoções às quais podem dar nome através das palavras que a sua língua lhes oferece. A forma como o explicou pareceu-me simples e evidente: se, num idioma, não existir uma certa palavra para descrever um determinado sentimento, então a pessoa não conhece esse sentimento ou, se o conhece, não sabe que o conhece – a nossa «saudade» serve como bom exemplo disso mesmo. Como disse o filósofo Wittgenstein, «os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.»
Tenho-me lembrado muitas vezes desta ideia e das suas implicações. Se é mesmo assim, se a nossa perceção da realidade é moldada pela linguagem, será que «A Realidade é Real» ou é só fruto das nossas perceções? Folheei um livro que tem precisamente por título a expressão mencionada acima e quando cheguei ao segundo parágrafo do prefácio deparei-me com a seguinte frase: «a ilusão mais perigosa de todas é a de que existe apenas uma realidade. Aquilo que de facto existe são várias perspetivas diferentes da realidade, algumas delas contraditórias, mas todas resultantes da comunicação e não reflexos de verdades eternas e objetivas.»
Desta visão da realidade, múltipla e construída pela linguagem e comunicação, podem resultar ideias importantes para a nossa vida política e social, que não se enquadram na forma como hoje percecionamos a realidade e olhamos para a política. Identifico três:
1.A política não é objetiva
Se a realidade não é una nem objetiva, a política tão pouco poderá sê-lo. Esta ideia é contrária à nossa tendência contemporânea de olhar para a política como uma luta entre o certo e errado, entre o verdadeiro e falso, o «lado certo da história» e o outro. A tecnocracia parte dessa narrativa, isto é, de que através das ciências descobrimos os dados objetivos sobre a realidade, e de que uma vez munidos dos dados, as decisões políticas tornam-se unas e evidentes, sem necessidade de recorrer a juízos não científicos (morais e ideológicos).
A realidade política não é um conjunto de factos puros, objetivos e intemporais à espera de serem descobertos. É uma conjugação de perceções, de interações e comunicações.
Mas a política não é isto, porque a realidade não é isto. A realidade política não é um conjunto de factos puros, objetivos e intemporais à espera de serem descobertos. É uma conjugação de perceções, de interações e comunicações. É uma dimensão moldada e corporizada pela linguagem, verbal e não só. Por isso, fazer política não é descobrir a realidade tal como ela é – porque ela, em si, é uma infinitude de perceções subjetivas – mas antes conjugar e construir as diferentes perceções da realidade comum tal como queremos que seja.
A persuasão política tem esse propósito: perante uma realidade complexa, procurar moldar a visão do outro, individual ou coletivo, à imagem da visão que tenho. Não porque ignoro os factos, mas porque os factos precisam sempre de um «alguém» que os interprete. E essa interpretação depende da linguagem e de perceções subjetivas. São essas ferramentas que a persuasão procura transmitir. Por isso, frases como «tens direito à tua própria opinião, mas não aos teus próprios factos» não fazem sentido: os factos são, em certa medida, sempre próprios, porque a interpretação depende de elementos subjetivos como a linguagem e a perceção. Por mais que tentemos «objetivar» a política, é no confronto entre perceções contraditórias que ela acontece.
2. A linguagem política não foi sempre esta – e a realidade também não
Se tudo é perceção e linguagem, tudo é contingente e temporal. O facto de hoje falarmos de maneira diferente de há 50 anos tem uma grande importância política: porque a linguagem não é apenas uma forma de abordar a realidade objetiva, é a própria realidade.
Por isso, ao vermos que a linguagem mudou, vemos que o ambiente político também mudou; que o discurso político mudou e que a realidade mudou.
Por isso, ao vermos que a linguagem mudou, vemos que o ambiente político também mudou; que o discurso político mudou e que a realidade mudou. A mudança da forma como lemos a realidade é a mudança da realidade em si. A evolução do conceito de liberdade é um bom exemplo: a forma como hoje entendemos a liberdade não é a mesma que há 200 anos, nem será certamente a mesma daqui a 200. Não existe um conceito independente, «certo» e factual sobre a liberdade: ela é aquilo que dizemos que é.
A noção de que «nem sempre foi assim» é importante para alargarmos a nossa compreensão da política e da realidade. Se precisamos de melhor política, como todas as gerações o dizem (todas não, pois esta perceção é certamente recente), precisamos de melhor conhecimento sobre a complexidade dos tempos e dos termos, não de menos.
3. Quem tem a linguagem a seu favor, tem vantagem no “jogo” da realidade.
Se a realidade é limitada e construída pela linguagem, quem define a linguagem define a realidade. Aqui o «quem» não se refere a uma entidade orwelliana, mas apenas a um fenómeno. Se a realidade não é una, algumas linguagens privilegiam certas conceções, e as restantes, outras. Tal como no exemplo do professor de psicologia, o vocabulário dos povos privilegia os sentimentos que as pessoas sentem. Na política acontece o mesmo: certas leituras da realidade privilegiam certas conceções ideológicas, outras leituras e vocábulos privilegiam outras. Isto não é propaganda: é o estado das coisas.
Mas ignorarmos esta situação tem um perigo. Se não conhecemos os limites, podemos esquecer-nos que existem. Se vivemos uma vida inteira dentro do mesmo capítulo do dicionário, podemos esquecer-nos – ou nunca descobrir – que existem outros capítulos, com outros termos e leituras da realidade. Se perdemos a noção do todo, perdemos a noção da nossa subjetividade. Tornamo-nos suscetíveis a visões limitadas e redutoras da realidade pois tomamos a parte pelo todo. Reduzimos a nossa capacidade de leitura e compreensão da realidade.
Enquanto que é natural que o debate político seja uma luta pelo vocabulário predominante, não é aconselhável que esqueçamos que assim é. Se o fizermos, até podemos viver uma vida confortável, mas sabotamos o bem comum. Porque quando a perceção da realidade de uns, e a linguagem que utilizam para a descrever, são eliminadas do léxico social, deixa de ser possível a sua participação plena na vida política. E numa sociedade onde só uns podem participar, não há bem comum.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.