Numa viagem pastoral aos Estados Unidos da América, um jornalista perguntou a São João Paulo II se era ‘pro life’ ou ‘pro choice’. Como é sabido, enquanto os primeiros defendem a vida desde a concepção, os últimos são a favor do aborto provocado. Neste contexto, a pergunta do jornalista era provocatória e até, decerto, desnecessária: São João Paulo II, sendo não só Papa como santo e um campeão dos direitos da pessoa, no seu país e no mundo inteiro, só poderia ser, obviamente, ‘pro life’.
Contudo, surpreendentemente, o Papa polaco respondeu que era ‘pro choice’! Ante a surpresa, senão mesmo escândalo, por esta resposta, São João Paulo II esclareceu que era ‘pro good choice!’
É hábil a forma como os defensores do aborto e da eutanásia apresentam as suas propostas, porque as não centram no direito à vida, quer do ser humano ainda por nascer, quer do doente prestes a morrer, mas cujo fim é artificialmente antecipado pela morte, nomeadamente à fome e à sede, como já acontece onde a eutanásia foi legalizada.
Os defensores do aborto e da eutanásia, para evitarem a sempre incómoda referência à morte provocada, centram a questão no princípio da liberdade, nomeadamente da mulher gestante, ou do enfermo terminal. Posicionado o tema num terreno emocional, que é sempre esquivo às razões da razão, é fácil manipular a opinião pública: colocado o problema no plano do caso concreto, seria preciso ser muito insensível para condenar uma pobre rapariga que, violada por um toxicodependente, expulsa de casa e grávida de uma criança deficiente, não leva a gravidez até ao fim. E não seria menos brutal exigir a um doente, cuja vida terrena está prestes a terminar, que sofra estoicamente tudo o que pode ainda padecer, só pelo prurido moralista de não lhe proporcionar a possibilidade de evitar um sofrimento cruel e inútil. Mas seria também profundamente desumano condenar uma mãe, ou um pai, que furtam alimentos para os dar ao filho, que corre o risco de morrer à fome, e, não obstante, ninguém ousa – por referência a casos marginais – defender o fim da criminalização do furto. Exatamente porque o direito não pode ser pensado à luz da emoção que situações particulares nos concitam, mas à luz dos princípios.
Num polémico artigo aqui publicado pelo dominicano Sérgio Dias Branco, defendeu-se o voto católico à esquerda. Talvez a denominação de esquerda e direita não seja o melhor critério para esclarecer o eleitorado católico, até porque não é fácil encaixar a Doutrina Social da Igreja, nem muito menos o próprio Jesus Cristo, nessas simplistas categorias que, na realidade, pouco ou nada dizem.
Se é verdade que as designações de esquerda e direita não fazem sentido por si mesmas, há contudo parâmetros objectivos que os católicos não podem ignorar à hora de votar. Como muito bem se escreveu nesse texto, “um católico reflecte sobre a sua participação política e o seu voto a partir da dignidade da pessoa, do bem comum, da solidariedade, e da subsidiariedade”.
Ou seja, nenhum fiel coerente deve dar o seu voto a nenhum partido político, seja de direita ou de esquerda, que seja contrário aos princípios humanistas do personalismo cristão.
Ou seja, nenhum fiel coerente deve dar o seu voto a nenhum partido político, seja de direita ou de esquerda, que seja contrário aos princípios humanistas do personalismo cristão. Trocado por miúdos, quer isto dizer que o católico deve optar politicamente em função da forma como um partido respeita, ou não, os irrenunciáveis princípios inerentes à vida humana, ao bem comum, à solidariedade e à subsidiariedade. Havendo conflitos entre estes interesses – pense-se, por exemplo, numa política mais solidária para com os pobres, mas pró-aborto, ou pró-eutanásia – há que dar sempre a prioridade à dignidade humana.
Neste sentido, o critério da dignidade da pessoa – ao contrário das categorias relativistas de esquerda e direita – é de fácil aplicação em eleições legislativas. Qualquer católico, que queira ter uma atitude política coerente com a sua fé, sabe que, em caso nenhum, pode votar num partido político que defenda a eutanásia ou o aborto, precisamente porque tanto a ‘interrupção voluntária da gravidez’ como o não menos eufemístico ‘direito a uma morte digna’, atentam contra o principal princípio da sua acção cívica: o primado da dignidade humana.
Se todos os partidos defenderem medidas contra a vida, quer no seu começo, quer no seu termo natural, o fiel católico pode, manifestando a sua discordância em relação a essa proposta, optar pelo mal menor. Por outro lado, a fé não deve ser instrumentalizada a favor, ou contra, nenhum partido. Neste sentido, não há, nem deve haver, um voto católico homogéneo: aos fiéis deve ser respeitada a sua liberdade essencial a votar ou absterem-se, e, votando, a fazê-lo como melhor entenderem, desde que o façam sem contradição com os princípios da dignidade humana e da liberdade, nomeadamente religiosa.
Em Portugal, não só os partidos tradicionalmente de esquerda são favoráveis ao aborto e à eutanásia, porque o actual líder de um partido dito da direita, também defende a eutanásia. Uma tal atitude faz certamente desaconselhável, para um católico coerente, a votação nesse partido, na medida em que seria, previsivelmente, um voto a favor da eutanásia. O mesmo se diga dos partidos de esquerda que não só defendem o aborto e a eutanásia, como também praticam uma política contrária à liberdade de aprender e de ensinar, não só pela sua descarada tentativa de concentrar no Estado o monopólio da educação, mas também pelo seu propósito de implementação obrigatória, em todas as escolas, da anticristã e anticientífica ideologia de género.
Os católicos portugueses podem ser de esquerda ou de direita, monárquicos ou republicanos, centralistas ou regionalistas, conservadores, liberais ou progressistas, mas não podem deixar de ser pela “dignidade da pessoa, do bem comum, da solidariedade, e da subsidiariedade”. A cada qual compete optar, com inteira liberdade, pela força política que, segundo o seu entendimento, melhor defende estes princípios, que são irrenunciáveis para um católico coerente. Não se pode ser católico e ser pró-aborto, ou pró-eutanásia, ou pró-racismo, ou pró-ideologia de género.
Um cristão é, obrigatoriamente, pró-vida. Pode ser também ‘pro choice’? Sim, claro, mas só se for, como ensinou São João Paulo II, ‘pro good choice’!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.