José Tolentino Mendonça disse há poucos anos que os católicos à esquerda “entraram numa espécie de clandestinidade — são clandestinos”. Nunca me senti assim, mas sei que há quem se sinta. Por isso, aqui estou a expor razões que não são apenas minhas.
Um católico reflecte sobre a sua participação política e o seu voto a partir da dignidade da pessoa, do bem comum, da solidariedade, e da subsidiariedade. A pessoa deve ser princípio, sujeito e fim das instituições sociais. Mas a pessoa existe numa rede de relações que determinam as suas condições de existência. Essa rede é, em muitos casos, feita de desequilíbrios, desigualdades, e injustiças que a comunidade como um todo deve procurar eliminar. É aqui que entra o dever de solidariedade encarado como virtude cívica. A subsidiariedade, a capacidade de decisão mais próxima dos cidadãos e utentes de serviços, é um princípio democrático que exige uma articulação com a gestão dos recursos centrais do Estado. As propostas políticas que partem destes princípios traçam fronteiras entre católicos à direita e à esquerda. Pensemos no terceiro, por exemplo. A solidariedade é pontual e tem o sentido da assistência? Ou é permanente e tem um carácter estruturante? Um católico à esquerda revê-se na segunda proposta. Numa sociedade inspirada por valores cristãos, seria adoptado um compromisso pelo qual as pessoas, como guardadoras das irmãs e dos irmãos, se obrigariam umas às outras e cada uma delas a todas, de acordo com as necessidades.
Ser de esquerda não pode ser uma mera proclamação. Há partidos que, dizendo-se de esquerda, têm seguido políticas de direita. A esquerda portuguesa está intimamente ligada à Revolução de Abril de 1974, ao seu levantamento militar e popular, e aos avanços políticos, económicos, sociais, e culturais que ela gerou. A maioria da hierarquia da Igreja tinha compactuado com a ditadura fascista, salvo honrosas excepções. Muitos católicos combateram-na, clandestinamente, sendo perseguidos, presos, torturados, como muitos outros anti-fascistas e democratas. A Constituição da República Portuguesa aprovada em 1976, com os votos contra do CDS, emanou desse processo libertador depois de 48 anos de ditadura e foi um acto fundador da democracia portuguesa. Trata-se de uma das mais avançadas e progressistas constituições aprovadas no século XX, consagrando direitos e deveres, e tendo a liberdade, a democracia, a solidariedade, a justiça social, a independência nacional, e a paz como horizonte. Tal não impediu que algumas das forças que a aprovaram, rapidamente propusessem alterações, não no sentido de a aperfeiçoar, mas de a desvirtuar. Nos quatro anos do governo de direita de PSD e CDS-PP (2011-2015), a nossa lei fundamental impediu que a devastação económica e social, conduzida com a cumplicidade do Presidente da República dessa altura, fosse ainda maior.
A igualdade e a liberdade como valores democráticos fazem parte do património da esquerda. Eles são vistos em articulação.
Esse governo cumpriu o programa económico e político da troika (BCE/CE/FMI). Foi até além dele e agravou a trajectória de declínio que tornaram Portugal dependente e vulnerável. No início deste século, à falta de desenvolvimento veio uma profunda recessão económica e uma dramática destruição das condições de trabalho e de vida da maioria dos portugueses. No entanto, a “crise” e a “austeridade”, não só não impediram, como até fizeram crescer as três maiores fortunas em Portugal em mais de mil milhões de euros. Uma economia que funciona assim é estruturalmente desequilibrada e injusta. Torna-se num “mecanismo de acumulação” em vez da “condigna administração da casa comum”, como disse o Papa Francisco na Bolívia em 2015. A esquerda olha esta realidade de frente e destaca a estreita ligação entre o empobrecimento de muitos e o enriquecimento de poucos. As posições conjuntas entre PS e os partidos de esquerda em 2015 permitiram reverter muitas das medidas gravosas do anterior governo e aprovar avanços nos sectores da administração pública e serviços públicos, do ambiente, do apoio e protecção social, da cultura, da educação e ciência, da fiscalidade, da justiça, das micro, pequenas e médias empresas, do poder local, da saúde, e da segurança social. É preciso continuar este caminho, reforçando a esquerda que procura superar o domínio dos monopólios do Portugal desigual e as imposições externas do Portugal amarrado.
A igualdade e a liberdade como valores democráticos fazem parte do património da esquerda. Eles são vistos em articulação. Bem entendido, o que se quer dizer não é tornar todas as pessoas iguais, indistintas, a sentirem e pensarem o mesmo, mas uma igualdade baseada na dignidade, no respeito e integração das diferenças. É sobretudo uma igualdade social, de acesso generalizado aos bens essenciais, que promova uma verdadeira igualdade de oportunidades na construção de cada vida, com uma liberdade real e não imaginária. O destino universal dos bens, pedra angular da doutrina social da Igreja, assim o pede, exigindo a redistribuição da riqueza e a atenuação das desigualdades. Por essa razão também, a noção de elite deve ser rejeitada, quer por ser anti-democrática quer por negar a fraternidade como horizonte da comunidade humana.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.