No dia seguinte às eleições europeias, entre a satisfação por uma grande onda de extrema direita que não aconteceu (nem esteve para acontecer) e a preocupação com os resultados da extrema direita, que foram altos em vários países e muito altos e preocupantes em alguns, multiplicaram-se as tentativas de compreensão e explicação do que se passa na Europa. Qual a razão para a polarização, radicalização e crescimento dos extremismos, em particular de direita?
Na quinta-feira seguinte, dia 13 de Junho, o Financial Times arriscava uma explicação. Segundo uma publicação do Eurostat três dias depois das eleições, em 2023, cerca de 21% da população europeia estava a risco de pobreza ou exclusão social. “Aqui está um facto que pode ajudar a explicar a viragem à direita nas eleições europeias do fim de semana passado”, arriscava o jornal. A explicação é tentadora, mas não resiste à prova dos factos. E, no entanto, pode estar perto da razão.
Os dados do Eurostat afirmam, de facto, que no ano passado mais de um quinto da população europeia estava em risco de pobreza ou exclusão social. O conceito não é óbvio ou fácil. Refere-se a pessoas que estão em risco de pobreza, de severa privação material ou social ou a viver num agregado com muito baixa intensidade laboral. Traduzindo, risco de pobreza quer dizer ter um rendimento disponível, depois de transferências sociais, inferior a 60% da média nacional. Ou seja, é um conceito que não tem em conta o custo de vida mas tem em conta a comparação com a média do país. Já o conceito de privação material ou social severa é mais concreto. E generoso. Implica não ter (acesso a) 7 items de uma lista de 13, que inclui a capacidade de enfrentar despesas inesperadas, passar uma semana de férias fora de casa, comer carne, galinha, peixe ou vegetariano pelo menos de dois em dois dias, ter acesso a carro para uso pessoal, ter internet, pelo menos dois pares de sapatos, poder comprar roupa nova com alguma regularidade e poder sair com família e amigos pelo menos uma vez por mês. Viver num agregado com baixa intensidade laboral quer dizer viver num agregado familiar onde quem tem idade e condições para trabalhar não trabalhou mais de 20% do tempo possível no ano anterior.
Tudo isto somado, há três coisas que são claras. É óbvio que muita gente no resto do mundo vive muito abaixo do que é viver em risco de pobreza extrema ou exclusão social na Europa. Mas também é óbvio que essa riqueza relativa não satisfaz muitos europeus. E, consequentemente, se mais de 20% da população europeia se sente em risco de pobreza extrema, isso quer dizer que mais de um quinto dos europeus se sente excluído das vantagens e sucessos do capitalismo democrático ocidental. Considerando que este é o número dos que estão em risco de pobreza extrema, e que as pessoas tendem a achar que estão pior do que estão, é razoável supor que muitos mais acreditam estar em risco de pobreza extrema ou, pelo menos, de pobreza. Dificilmente se pode dizer que esta é uma história de sucesso. Pelo menos para quem se vê assim. E facilmente se pode imaginar que estes números explicam os outros, os dos votos nos partidos extremistas. Em parte, pelo menos. Completamente, não.
A própria notícia do Financial Times desmentia a sua tese. Se procurarmos os países onde há mais radicalização ou onde é mais preocupante a sua consequência eleitoral, vamos encontrá-los abaixo da média europeia. Alemanha, França e Hungria estão um pouco abaixo dos 21,3%, que é a média na Europa. Áustria e Países Baixos estão mesmo mais perto dos 15%. Portugal está nos 20%.
Se o Financial Times tivesse razão, os países mais polarizados e onde a extrema direita tem maior sucesso eleitoral deveriam estar no topo da tabela, onde estão a Roménia e a Bulgária, ou mesmo Espanha e Grécia, mas não estão. E, no entanto, é intuitivo que há-de haver aqui alguma verdade. Mas pode ser outra.
Mais do que os dados estatísticos reais, seria interessante perceber quantos europeus se sentem em risco de pobreza extrema. E como é que a definem. Provavelmente descobriríamos que são muitos mais os que se sentem muito pobres ou excluídos, e certamente concluiríamos que é por muito menos do que estes indicadores.
Na introdução ao livro que publicou em 2020, A Grande Escolha, Adolfo Mesquita Nunes conta que decidiu escrevê-lo quando percebeu que muitos dos seus amigos acreditavam viver pior que os seus avós, quando “sobretudo do ponto de vista da classe média, era para (si) inimaginável comparar os níveis de pobreza, subnutrição, analfabetismo, exploração no trabalho, esperança média de vida, mortalidade infantil, saúde sexual, ou de consagração de direitos das mulheres que existiam no tempo dos nossos avós com aqueles de que hoje beneficiamos”. Já para não falar dos dados de consumo, da alimentação às viagens ou roupa. O problema, explica Mesquita Nunes, é que “por muito que (quando confrontados com os números e os dados reconhecessem que) a nossa vida fosse melhor que a dos nossos avós, os meus amigos não conseguiam encontrar sinais de esperança e segurança. Pelo contrário, sentiam-se defraudados”.
No próprio dia das eleições, Marine Le Pen, cujo partido teve mais de 30%, bastante à frente do candidato de Macron, partilhava a sua explicação para o resultado. “Esta grande vitória dos movimentos patrióticos, alinhada com os rumos da história (…) encerra este doloroso interlúdio globalista, que tanto sofrimento tem causado aos povos do mundo.” A História desmente Le Pen, mas a narrativa valida-a. É esse o problema que o Financial Times tentou identificar.
Há um enorme número de europeus (e americanos também) convencido que vive pior do que os seus avós viveram e convicto de que os seus filhos viverão ainda pior, se nada for feito. Nas últimas décadas, os partidos de centro direita prometeram-lhes que mais comércio e mais liberdade os fariam mais ricos, enquanto os partidos de centro esquerda garantiram que o Estado os protegeria quando as coisas não corressem bem, e os poupariam a alguns custos, assumindo-os os Estado. Ambos cumpriram, no essencial. Os indicadores, exigentes quanto ao que é não ser extremamente pobre ou excluído, deveriam provar o sucesso destes anos de globalização. A percepção, porém, é diferente. Os números dizem que mais de 20% são extremamente pobres. E muitos mais acharão que são. Quem se sente assim dificilmente vota no que está, no que tem. Sobretudo se lhes prometerem muito melhor mais facilmente. É essa a promessa dos extremistas.
Os indicadores, exigentes quanto ao que é não ser extremamente pobre ou excluído, deveriam provar o sucesso destes anos de globalização. A percepção, porém, é diferente. Os números dizem que mais de 20% são extremamente pobres. E muitos mais acharão que são. Quem se sente assim dificilmente vota no que está, no que tem. Sobretudo se lhes prometerem muito melhor mais facilmente. É essa a promessa dos extremistas.
A teoria da ferradura, de que os extremos se aproximam, ou se tocam mesmo, tem existência prática. Entre o centro esquerda e o centro direita há diferentes visões sobre o que é, o que pode e o que deve ser o Estado. Entre os extremos há menos. Le Pen ou Mélenchon, para dar um exemplo concreto, coincidem na responsabilização das elites e na promessa de que o Estado intervirá para criar empregos, impedir a sua deslocalização para o estrangeiro e garantir a sua relocalização em França. Divergem, depois, na forma como o farão, com mais ou menos impostos, com mais ou menos aceitação de imigrantes e gente de fora, com mais ou menos preocupação com as regras ambientais e na forma como tratarão as minorias. Mas tudo isso é uma escolha secundária. À grande questão os radicais e extremistas de ambos os lados respondem com a culpabilização das elites, uma maior intervenção do Estado e mais exercício de poder.
No essencial, a grande proposta política dos radicais, depois de culparem as elites, os ricos ou os imigrantes, as minorias ou as maiorias, é fundamentalmente a mesma: um Estado protector. Em resposta ao medo, os extremistas prometem segurança, enquanto os moderados deixaram de conseguir falar com esperança do que propõem, acabando, com frequência, por ter como derradeiro e único argumento a ameaça dos radicais. Como proposta política é muito pouco.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.