Receber o novo Papa é um desafio tanto à nossa generosidade como à nossa tentação de promover canonizações apressadas. A emoção do Papa Leão XIV, na varanda da Basílica de S. Pedro, é bem sinal de como há coisas mais para temer, do que para desejar, e julgo necessário respeitar essa comoção.
Mas, hoje, não é despropositado perguntar o significado da eleição de um cardeal com o perfil e a biografia de Robert Francis Prevost na larga tradição da Igreja. De que forma é que a votação dos cardeais reflete perfeitamente como a fidelidade à tradição não é um imobilismo, mas uma fidelidade na mudança e no espírito dos sinais dos tempos?
No final do séc. 18, uma grande tensão entre a Igreja Católica presente nos Estados Unidos e a Santa Sé tornou-se o tema cimeiro do debate eclesial. Até que ponto seria, ou não, legítimo adotar o catolicismo à realidade local? Seria a tendência mais prática do catolicismo romano uma prova de caridade, ou, simplesmente, um ato de contínuo voluntarismo? Curiosamente, foi Leão XIII que resolveu a questão numa a carta intitulada Testem Benevolentiae, dirigida ao bispo de Baltimore, aconselhando um olhar mais desconfiado para com a modernidade. Passado mais de meio século, Leão XIII não imaginaria que o seu sucessor onomástico seria, precisamente, alguém nascido no continente de onde vinha a maior desconfiança do seu tempo. Terá isto significado? Talvez. Possivelmente trata-se de um sinal de que a Igreja superou o seu conflito com a modernidade. Ou, se ainda não o superou na totalidade, – é discutível até que ponto tal é desejável – está numa nova síntese desse seu processo.
Possivelmente trata-se de um sinal de que a Igreja superou o seu conflito com a modernidade. Ou, se ainda não o superou na totalidade, – é discutível até que ponto tal é desejável – está numa nova síntese desse seu processo.
Mas este caminho não se remete só à questão da Igreja americana. No largo período da história da Igreja, a história da missionação nem sempre foi pacífica. E hoje, graças à honestidade, mas também à falta dela, não é de todo. Leão XIV é o primeiro Papa realmente missionário no sentido comum do termo. Não foi simplesmente núncio ou diplomata. Foi missionário no Peru durante mais de duas décadas e isso, também, conta. De certa maneira, dá até a sensação de que podíamos encontrá-lo a varrer a nossa casa, quando regresássemos do trabalho, ao fim do dia.
Porém, considerar que a escolha do cardeal Prevost para Papa é significativa na relação da Igreja com a modernidade tem um aspeto ainda mais estruturante. Prevost é um homem complexo. Não tem um currículo linear. Não tem uma vida dominada pela mesma terra ou a mesma “profissão”. Parece-se mais com um jovem que não sonha com um emprego para a vida e vai acumulando experiências, do que, propriamente, com um ancião que foi seguindo um esquema delimitado na adolescência. É americano, sem o ser. É peruano, mas teve de ser adotado como tal. Formou-se em matemática e doutorou-se em direito canónico, mas não se escondeu atrás de um livro e de uns quantos números ou frações. É fã e jogador amador de ténis, mas calça umas galochas no meio das cheias. É um homem do diálogo, sem ser um diplomata de carreira formado na Academia Eclesiástica de Roma.
O Papa assumiu-se como “filho de Santo Agostinho”, mas não o é só por ser professo da Ordem inspirada nesse Doutor da Igreja. É-o precisamente pelo perfil cosmopolita que apresenta. Agostinho era romano, sem ter nascido em Roma. Natural do norte de África, viveu em Cartago, Milão e Hipona. Era profundamente educado na literatura greco-romana, mas isso não lhe quebrou a sensibilidade pastoral. Confrontou-se durante com o Maniqueísmo e o Plegianismo, mas formou uma regra de convivência e de diálogo.
Talvez, por isso, por essa vida tão cheia de vida, acreditamos que Leão XIV é alguém capaz de ser um Papa dos matizes, que ele possui um linguagem para interpretar a revolução antropológica que vivemos, que ele é capaz de entender as velocidades, os gostos, as sensibilidades, sem que cada uma delas corresponda, por natureza, a uma sentença de exclusão. E isso é muito necessário. O Espírito, afinal, ainda deve andar por aí à solta.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.