No dia 2 de abril de 2005, morreu o Papa João Paulo II. Foi num sábado à tarde, início do Domingo da Misericórdia, depois de alguns anos de um envelhecimento sofrido. Semana após semana, vimos um Papa velhinho, doente e curvado, débil e no limite.
Nos primeiros anos do pontificado a Igreja e o mundo tiveram diante de si um Papa novo, diferente, cheio de uma alegria e de uma energia contagiantes, de gestos fortes, não propriamente jovem, mas ainda atlético, tremendamente comunicativo. Um homem de gestos largos e proféticos, audacioso e cativante, peregrino do mundo inteiro.
Pelo contrário, nos últimos tempos, as palavras já não saíam, mas a linguagem do corpo parecia gritar cada vez com mais eloquência e transcendência. Do vigor físico dos tempos da sua Polónia natal até ao sofrimento visível de um corpo curvado pelo tempo, o mundo inteiro assistiu ao testemunho poderoso de quem se entregou até ao fim como sinal encarnado de Cristo e do mistério de amor que Ele veio revelar. Na experiência da fragilidade e da fronteira, o mundo pôde ver o testemunho de um homem forte, persistente, resistente até ao fim. Tiveram nele um sentido plenamente existencial as palavras de Jesus: «Isto é o meu corpo, que será entregue por vós» (Lc 22, 19).
Como filósofo e como teólogo, Karol Wojtyla encarou com seriedade a «viragem antropológica» da modernidade e percebeu que a dignidade da pessoa podia ser entendida a partir da categoria do corpo. Depois da crise provocada pela encíclica Humanae Vitae, de Paulo VI, a Igreja parecia ser olhada com uma certa desconfiança em tudo o que pudesse dizer acerca da sexualidade, mas na teologia do Papa Wojtyla a necessidade da Igreja ser «perita em humanidade» passava indiscutivelmente por uma Igreja que é «perita em sexualidade». Apoiado na sua já larga experiência pastoral na Arquidiocese de Cracóvia, sobretudo no trabalho com as famílias e os jovens casais, e na sua reflexão teológica e filosófica precedente, compreendeu que era necessário desenvolver uma ampla teologia bíblica que anunciasse ao mundo esta «Boa Nova» da Igreja acerca do corpo e da sexualidade.
Assim, no dia 5 de setembro de 1979, começou aquele que foi o projeto catequético de maior fôlego do seu pontificado, e cinco anos depois, no dia 28 de novembro de 1984, apresentou a catequese final. A chamada «Teologia do Corpo» é um amplo tratado onde se tocam os problemas do corpo e da sexualidade, do matrimónio e da virgindade, do amor e da fecundidade, e onde o Papa desenvolve uma visão do amor humano à luz do plano divino.
Mas, é mais do que isso. É um tratado antropológico onde nos podemos olhar de forma adequada e integral, longe de superficialidades e de parcialidades. Uma visão larga de quem somos e da vocação a que somos chamados. Contrariando a tendência de alguns movimentos do pensamento humano, do passado e do presente, a separar e até mesmo a contrapor o teocentrismo e o antropocentrismo, a reflexão teológica de João Paulo II procura uni-los de uma forma orgânica e profunda através da «categoria do corpo».
O corpo humano surge no mundo como o «sacramento primordial» do Mistério de Deus, como sinal essencial da revelação. Como «sacramento», o corpo irrompe como «sinal que transmite eficazmente no mundo visível o mistério invisível escondido desde a eternidade». E em virtude da encarnação do Verbo de Deus, o corpo humano é a ligação entre a teologia (o estudo de Deus) e a antropologia (o estudo do homem).
O corpo fala sobre nós e fala sobre Deus porque, em Cristo, o seu Corpo torna-se sacramento da Pessoa Divina do Verbo. «N’Ele habita corporalmente toda a plenitude da divindade» (Col 2,9). A sua humanidade é como que «sacramento», sinal e instrumento da sua divindade. No visível da sua vida terrena, revela-se o mistério invisível da sua filiação divina e da sua missão redentora. Esta é a lógica essencial do Cristianismo, a lógica da Encarnação.
O corpo humano, como um «evangelho vivo», revela o mistério do homem e o mistério de Deus, na tensão entre a Criação e a Ressurreição. A Encarnação do Verbo exprime o abraço onde o divino e o humano se encontram de forma inseparável.
A «Teologia do Corpo», aparentemente esquecida, talvez pela sua densidade, ou pelo incómodo que provoca na proposta dos temas abordados é, nas palavras de George Weigel, uma verdadeira «bomba-relógio teológica» pronta a ser despoletada, com profundas consequências teológicas e pastorais.
Num tempo em que se proclama um pluralismo relativista em relação aos diversos modelos de matrimónio e de família, a Teologia do Corpo anuncia a masculinidade e feminilidade como formas específicas de ser humanidade, como complementaridade que se realiza na «comunhão das pessoas».
Num tempo em que avança uma «cultura da morte», a Teologia do corpo proclama a «cultura da vida» e a importância do corpo, nas suas diversas expressões, desde a conceção à morte natural.
Num tempo em que tudo parece ter um preço e se esquece a gratuidade das relações, a Teologia do Corpo anuncia o «significado esponsal do corpo», como dom radical, no cumprimento da nossa mais alta vocação.
Num tempo em que os meios publicitários e artísticos usam o corpo como «objeto», a Teologia do Corpo proclama a dignidade e a beleza do corpo, à luz de uma estética renovada e chamada a dar testemunho da beleza da humanidade criada por Deus, exprimindo a esperança de um mundo transfigurado inaugurado por Cristo ressuscitado.
Num tempo em que ressurgem novas tendências gnósticas, com pendor para uma espiritualidade e uma ética desencarnadas e só sentimentais, a Teologia do Corpo proclama o Mistério da Encarnação e a importância do concreto, da carne, do real, contrária a todas as formas de ideologia.
São João Paulo II falou-nos através do corpo, ensinou-nos que o corpo fala, e através dele falou-nos de Deus. Ensinou-nos que o corpo que somos fala da nossa identidade tanto na força da juventude quanto na debilidade da velhice. O corpo fala quando transmite ideias, pensamentos, sentimentos, emoções e fala até quando está prostrado e sem consciência aparente. Fala na vida e no poder de a gerar e fala na morte e passagem. Fala no ventre materno ainda antes de nascer e falará, perfeitamente, depois da morte, na plenitude do corpo ressuscitado. Fala de nós e fala de Deus.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.