Dou comigo a pensar o que muitos estarão a pensar: como será a Páscoa este ano? Não existirá o tradicional almoço de família, nem visitas para deixar as amêndoas, nem o compasso, nem sequer celebrações litúrgicas. Ficará talvez a decisão de não perdermos as celebrações pela televisão, embora não seja a mesma coisa. E, mesmo essas, apenas terão o padre e 2 ou 3 pessoas, cada uma estrategicamente afastada das outras a pelo menos dois metros de distância social. Páscoa este ano? Que Páscoa?
Recordamos tantas vigílias pascais que já vivemos no passado, com a igreja cheia de gente às escuras e o círio a avançar, a acender as velas e a iluminar aos poucos toda a igreja. “Eis a luz de Cristo!” Recordamos as missas de 5ª feira santa e o comovente lava-pés. Recordamos as vias-sacras de 6ª feira e a celebração da morte do Senhor com o sentido beijo ou abraço da cruz, cada um com a sua cruz unida à de Jesus. Para a quase totalidade dos católicos nada disto existirá este ano. E nunca pensámos que tal pudesse acontecer.
Por outro lado, creio que seria errado deixar agora entrar dentro de nós uma espécie de resignação a uma “Páscoa diminuída” comparando-a nostalgicamente com as Páscoas do passado. Se acreditamos que, de tudo, Deus tira bem (se acreditamos que até da morte Ele tira vida!) devemos então procurar a Graça escondida na Páscoa deste ano. Será certamente uma Páscoa diferente mas isso não quer dizer que não possa ser uma Páscoa muito marcante, uma Páscoa tão bem vivida que marque para sempre as nossas histórias de fé. Ao vermos fechadas as portas das igrejas devemos perguntar-nos: que portas novas Deus nos está a abrir para a redescoberta da Páscoa?
Aqui vai o meu contributo com algumas sugestões de graças que podem estar contidas nesta Páscoa diferente que nos espera:
1. Viver uma Páscoa ainda mais interior
Nós, cristãos, que já tínhamos passado da Páscoa dos coelhinhos que põem ovos para a Páscoa centrada nas celebrações litúrgicas, este ano temos de passar desta Páscoa para outra ainda mais interior, apenas alimentada daquilo que as ditas celebrações significam e transmitem. O facto de não existirem celebrações litúrgicas públicas pode ser, para cada um de nós, uma porta aberta para uma vivência mais interiorizada da Páscoa.
Nisto talvez a experiência do povo de Israel no exílio, longe do Templo e das suas celebrações, nos possa ajudar:
“Recordo como passava em cortejo para o templo do Senhor,
entre as vozes de louvor e de alegria da multidão em festa.”
Quem escreve estas palavras é o autor do Salmo 42(41). Está no exílio e recorda as celebrações no Templo de Jerusalém antes da ocupação pela Babilónia. São palavras cheias de saudade. Mas o salmista não se fica na nostalgia do passado. Ele continua a sua oração pedindo a Deus as graças interiores da luz e da verdade que poderão alinhar interiormente o seu coração com os caminhos do Templo, ainda que estando longe dele:
“Enviai a vossa luz e verdade;
sejam elas o meu guia e me conduzam
à vossa montanha santa e ao vosso santuário.”
Privados das celebrações do Tríduo Pascal nos nossos templos, este ano a Páscoa tem de ser vivida mais dentro de nós. Podemos assistir às celebrações na televisão ou no tablet mas é no coração, e não nos écrans, onde temos de as viver. Se calhar é assim todos os anos, todas as Páscoas têm de ser vividas interiormente por cada um de nós, mas este ano não dá para fingir nem fugir. Se esta Páscoa não for vivida interiormente ela não existirá, passará ao nosso lado como uma saudade, um tempo que não faz história a não ser pela negativa.
Custará muito não poder comungar na 5.ª feira santa, o dia da instituição da Eucaristia. Mas Jesus saberá chegar pessoalmente ao interior de cada um através da comunhão espiritual. Não foi isso precisamente que Jesus inaugurou na última ceia, uma forma nova de presença e de comunhão interior com cada pessoa?
Para vivermos assim a Páscoa precisamos (ainda mais este ano) de espaços interiores. Quanto mais as portas dos templos se fecham tanto mais devem estar abertas, para a oração, as portas dos nossos templos interiores, dos nossos corações. Refugiemo-nos nos cantos dos nossos quartos para rezar, levantemo-nos de manhã cedo ou acordemos a meio da noite e acendamos uma vela para entrar no nosso santuário interior onde Cristo nos espera com a Sua Presença próxima e amiga.
A Páscoa exige, por isso, uma transformação pessoal criativa para que essa vida nova, essa nova maneira de estar na vida, possa realmente surgir. A palavra de Jesus é clara: “Não se deita vinho novo em odres velhos”.
2. Levar mais a sério as feridas de Jesus ressuscitado
Creio que por vezes temos uma visão demasiado simplista do mistério pascal como se a paixão de Jesus, a Sua morte e o Seu túmulo vazio tivessem sido momentos transitórios do passado depois definitivamente suplantados pela Sua ressurreição. Fazemos a adoração da cruz na 6.ª feira santa e meditamos aí as Suas feridas (e as nossas) mas depois celebramos a ressurreição e pode parecer que a cruz e as feridas desapareceram.
Esta visão simplista do mistério pascal mostrar-nos-ia uma cruz sem ressurreição ou uma ressurreição sem cruz. Ou seja: obrigar-nos-ia a decidir entre o desânimo e a alienação.
No entanto Jesus ressuscitado aparece aos apóstolos e a Tomé com as feridas da paixão. “Põe aqui o teu dado nas Minhas feridas”, diz Ele a Tomé. Porquê? Creio que para nos mostrar claramente que a ressurreição não apaga o sofrimento mas abre-nos a possibilidade de o vivermos de uma maneira totalmente nova, transfigurada, eventualmente até salvadora.
Como escreveu S. Paulo: “Trazemos sempre em nosso corpo os traços da morte de Jesus para que também a vida de Jesus se manifeste em nosso corpo.” (2 Cor 4, 10)
O facto de acompanharmos todos os anos, nas celebrações do Tríduo Pascal, a sequência cronológica dos acontecimentos de há 2000 anos atrás pode reforçar esta ideia errada de que, com a ressurreição de Domingo, a cruz de 6ª feira rapidamente já passou e que agora temos é de nos dedicar a preparar o almoço de Páscoa.
Este ano, porém, não haverá celebrações públicas de adoração da cruz (nem, provavelmente, grandes almoços de Páscoa). Talvez Jesus nos esteja a querer dizer: “não tenhas pressa a abraçar as feridas e não são tanto as Minhas feridas que Eu quero que tu abraces mas as dos outros e as tuas”. Esta pode ser uma Páscoa de abraçar feridas de uma maneira ressuscitada: não para nos lastimarmos depressivamente nelas nem para as pretendermos simplisticamente curar (há feridas que nem se curam) mas para ensaiarmos novos modos de as viver em compaixão e fecundidade.
O abraço que daríamos à cruz de Jesus na cerimónia de 6ª feira santa podemos dá-lo à cruz do vizinho doente, deixando à sua porta uns biscoitos calmamente feitos com amor, à cruz da amiga abandonada pelo marido, fazendo-lhe um telefonema sem pressa, ou à cruz do nosso coração vazio unindo os nossos sofrimentos aos da Paixão de Cristo para a salvação do mundo.
E, fazendo assim, falaremos a voz da ressurreição, que é a voz da resistência contra a falta de esperança, mesmo nas dificuldades: “Luta porque tudo acabará bem, Deus tem mais poder que o mal. Tem mais poder até que a própria morte! Não baixes os braços. Não vês como o Seu amor consegue tirar bem do mal? Não vês como a Sua presença até já se faz sentir, mesmo no meio das feridas?
3. Deixar-se transformar pessoalmente
A vida nova que nos vem da ressurreição de Jesus e do baptismo há-de ser uma nova maneira de estar na vida. (Não uma experiência “espiritual” que se acrescenta sobre a nossa vida velha de sempre, o que seria uma falsidade e uma alienação). S. Paulo fala do “homem velho” que entrou no túmulo com Cristo para daí ressurgir com Ele um “homem novo”. A Páscoa exige, por isso, uma transformação pessoal criativa para que essa vida nova, essa nova maneira de estar na vida, possa realmente surgir. A palavra de Jesus é clara: “Não se deita vinho novo em odres velhos”. O vinho novo da ressurreição do Senhor exige “odres novos”, novas atitudes, da nossa parte.
Este ano sentimos isso mais do que nunca. O facto de não podermos sair de casa para participar nas celebrações do Tríduo deixa mais a nu esta verdade crua de que a Páscoa consiste precisamente em deixar-se transformar pessoalmente com Cristo. Os ritos litúrgicos são expressão e ajuda mas não são uma substituição deste processo pascal individual. Tradicionalmente chamamos a este processo de “conversão”, a busca de uma versão melhorada de nós mesmos e das nossas relações. A Páscoa nua deste ano remete-nos assim para o essencial. Mas pôr-se em causa a si mesmo é difícil (para quem tem fé e para quem não tem)…
Como seria uma versão melhorada de nós mesmos com Cristo? Demos largas ao sonho porque toda a mudança começa na imaginação. Já Santo Inácio, na sua convalescença, se punha a imaginar novas versões de si mesmo e foi aí que começou a surgir um homem novo (“E se eu fosse a pé à Terra Santa?”, “E se eu fizesse como fez Santo Onofre?”). Também nós podemos imaginar para nós padrões diferentes de relação com os outros, com o tempo, com os bens materiais, etc. “E se eu agora…?”.
Talvez um bom exercício para a nossa noite de Aleluias, a noite da Vigília Pascal, depois de assistirmos à transmissão da celebração na televisão ou no computador, pudesse ser este mesmo de nos sentarmos com papel e caneta na presença de Cristo ressuscitado para completarmos com Ele esta frase: “E se eu agora… ?” E ir tentando finais e mais finais diferentes para esta frase até sentirmos entrar em nós a profunda paz, alegria e entusiasmo da ressurreição.
Em suma: diz-se que “quando se fecha uma porta Deus abre uma janela”. Que janelas se abrem para nós nesta Páscoa? Talvez, este ano, Ele possa estar mesmo a deitar paredes abaixo…
Santa Páscoa de 2020!
Fotografia de: Christian Chen – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.