Parados e a correr

Num mundo em que a comunicação estende os nossos tempos e geografias muito além do que estamos capazes de processar, voltar à vida digerida, acolhida na sua profundidade, é um exercício verdadeiramente espiritual.

Manifesto

Como ser cristão no século XXI? Como fazer uma leitura profunda, séria e radicada na Fé, deste tempo que nos é dado viver? Estas são algumas das perguntas que nos puseram aos três a pensar e que, no fim do dia, movem esta série de seis artigos. O nosso objetivo é procurar os sinais do Espírito que se podem intuir nos fenómenos do nosso tempo, sublinhando intuições espirituais e opções fundamentais da Companhia de Jesus e da Igreja que nos apontam caminhos de esperança. Assinamos os três porque, mesmo sendo um de nós a redigir, a escrita é fruto de um caminho de partilha, de reflexão e de pensamento dialogado. Esperamos que esta reflexão possa ajudar a sintonizar com o Senhor, que passa fazendo o bem e nos chama a segui-l’O.

 

O tempo que vivemos é um tempo de ligações rápidas, de permanente troca de informação entre pessoas, comunidades e estruturas sociais. A globalização tornou a informação acessível em tempo relâmpago e capaz de nos entrar pela vida adentro, de nos notificar! Vivemos todos unidos por uma teia de ligações, forjada na História e tecida com fios elétricos e informação sem fim, à distância de um clique.

Os números são expressivos: em média, olhamos para o telemóvel 144 vezes por dia (a cada 7 minutos); um adulto passa cerca de 6h38min por dia online (Digital 2025, 2025). Tudo isto compõe a rede de tráfego contínuo, sempre conectada, em que somos constantemente bombardeados com informação de todos os tipos, a toda a hora.

O cenário é simultaneamente fascinante e intimidante. Este tráfego abriu-nos potencialidades que há dois ou três séculos não eram mais que um sonho estapafúrdio. Trouxe também o peso de estar sempre ON, sempre ligados. Creio que a tentação é uma leitura parcial, que apenas sublinha um dos ângulos: a parte virtuosa, através do elogio do progresso, ou a parte viciosa, atentando aos maus efeitos que a globalização e a massificação da técnica nos trouxeram. Como podemos situar-nos diante do bombardeamento constante de informação? E o que é que a fé tem a dizer sobre isto?

Creio que a tentação é uma leitura parcial, que apenas sublinha um dos ângulos: a parte virtuosa, através do elogio do progresso, ou a parte viciosa, atentando aos maus efeitos que a globalização e a massificação da técnica nos trouxeram. Como podemos situar-nos diante do bombardeamento constante de informação? E o que é que a fé tem a dizer sobre isto?

É curioso atentar ao verbo que, na história da Salvação, serviu como definição de identidade ao Povo de Deus: shemá (Listen (Shema), sem data). Este verbo hebraico, que encabeça a oração que os judeus rezam ao início de cada dia, é extraordinariamente rico no seu significado: escutar, atentar, tomar cuidado com, obedecer. Shemá, apesar de ser um verbo na voz ativa, define uma atitude de passividade, de disponibilidade para acolher a própria experiência, porque a realidade é o meio privilegiado que Deus escolhe para falar àqueles que ama. O Povo de Deus define-se na relação, como um povo que se põe à escuta, procurando ser fiel à Aliança, ao laço vital que o une a Deus.

Se fizermos um exercício de imaginação, vemos como a atenção do shemá não surge espontaneamente e menos ainda de improviso. A História está cheia de desacertos que, em boa medida, nasceram de faltas de atenção: pensemos na forma bem-intencionada como o progresso tecnológico foi pretexto para ignorar o abuso dos recursos naturais! Esgotou-se e abusou-se, em total desatenção aos sinais que a própria Criação nos ia oferecendo desta voragem. Isto não se passa apenas em macroescala! O modo como vivemos o nosso dia-a-dia também tem destes erros e desacertos. Quantas vezes não estamos a conversar com alguém sem estar, porque recebemos uma mensagem! E quanta Beleza nos pode passar ao lado, porque estamos com os olhos presos ao brilho do ecrã!

Santo Inácio, nos Exercícios Espirituais, apresenta-nos uma atitude fundamental que pode ser método para aplicar o shemá à vida comum: diante da contemplação (que se faz das cenas da vida de Cristo), é necessário “refletir em mim mesmo para tirar algum proveito” (EE 106). Isto não é um convite à reflexão e, menos ainda, à abstração, mas um alerta para a necessidade de parar, de não estar sempre a falar, a consumir, sob pena de nos passar ao lado a forma suave que é a do encontro com Jesus. Em sentido inaciano, refletir é um exercício primeiramente passivo: ao deixar-me afetar pela realidade, sem contrapor imediatamente, encontro nela um espelho que me reflete e me devolve a mim, ajudando-me a ver melhor. Inácio convida-nos a um shemá da vida quotidiana, minúscula, espantosa. O desafio está em reconhecer quais os sinais desta Vida que se escondem no meio do turbilhão e da solicitação constantes.

O método inaciano pede atenção e decisão: atenção para que possamos considerar as várias propostas e estímulos; decisão para priorizar o que é significativo ou importante entre os dados recebidos. Esta decisão é um risco, já que nos deixa mais vulneráveis aos eventos da vida – sem controlar, sem abafar, sem filtrar segundo os apetites e conveniências. Num mundo em que a comunicação estende os nossos tempos e geografias muito além do que estamos capazes de processar, voltar à vida digerida, acolhida na sua profundidade, é um exercício verdadeiramente espiritual. A busca quotidiana do Espírito, pela realidade que nos reflete, é o que permite tirar proveito. Esta é a base do exame diário, que tantas vezes e de tantas formas é proposto na espiritualidade inaciana: tornar concreto o shemá na minha realidade particular, para tirar algum proveito desta vida concreta que o Senhor me oferece! Chegar ao fim do dia e buscar a vontade de Deus, que vem ao meu encontro nas circunstâncias concretas, nas pessoas que encontro e nos lugares que habito – este é o shemá inaciano!

Tal como o Povo de Israel, também nós buscamos uma identidade no meio das solicitações, dos estímulos que nos dispersam. Pondo-nos à escuta do Espírito, entre notificações e apelos, no desejo de encontrar uma relação que dê sentido e consistência à vida, podemos tirar verdadeiro proveito deste tempo extraordinário que o Senhor escolhe como forma de vir ao nosso encontro.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.