Um pouco de História
Nos três primeiros séculos, a Igreja sofreu sete grandes períodos de perseguições. O martírio de sangue era o cume da entrega a Deus. Em 313 d.C. chegava, finalmente, um tempo de paz. A Igreja assumia a cultura e a organização do império romano. “Em Roma, sê romano”* é expressão que o ilustra bem. Pouco tempo depois, chegavam do norte os povos germânicos, a quem os romanos chamavam bárbaros. O império de Roma conservava ainda o seu esplendor e fausto, mas estava em decadência: famílias desfeitas, natalidade baixíssima e muitos abortos; impostos altíssimos, pobreza e corrupção; e um ambiente de opressão que gerava múltiplas revoltas populares. Os vários povos germânicos – suevos, saxões, lombardos, francos, godos, visigodos, vândalos, etc – não tinham, nem a arquitetura, nem o direito, nem a arte romana, mas eram povos vigorosos, ascéticos, com forte sentido de família: eram monogâmicos e a mulher era muito valorizada. Pulverizados em muitas tribos, guardavam um alto sentido comunitário. Eram danados para a guerra e começaram a pressionar muito as fronteiras do império. Os ardilosos romanos ainda conseguiram alistar soldados germanos nos seus exércitos, mas a maioria das tribos do norte não se deixou ‘apanhar’ na teia imperialista e veio mesmo a provocar a queda do império romano do Ocidente, em 395 d.C. Essa data foi uma tragédia para a Igreja do tempo, que perdia o seu chão cultural e organizacional.
Na História, a resposta a uma grande crise de época vem habitualmente condensada numa pessoa. Neste caso: São Bento. Que fez ele? Iniciou uma comunidade que respondia exatamente ao que era preciso, no meio da confusão da ‘invasão bárbara’: um novo vigor espiritual e anímico, vivido agora na estabilidade e no equilíbrio. Lugares de ordem e paz, os mosteiros tornaram-se âncoras espirituais, culturais e agrícolas. Um dia monástico incluía oito horas para rezar, celebrar e estudar (incluindo as refeições em silêncio); oito horas para trabalho manual (normalmente no campo); oito horas para descansar. O cume da entrega cristã passava a ser a observância do radical equilíbrio monacal Ora et Labora. Nos séculos seguintes irão multiplicar-se os mosteiros e em torno de muitos deles se virão a desenvolver as grandes cidades da Europa moderna.
São Bento. Que fez ele? Iniciou uma comunidade que respondia exatamente ao que era preciso, no meio da confusão da ‘invasão bárbara’: um novo vigor espiritual e anímico, vivido agora na estabilidade e no equilíbrio. Lugares de ordem e paz, os mosteiros tornaram-se âncoras espirituais, culturais e agrícolas.
Na Regra de São Bento**, o abade é a figura central: o pai do mosteiro. Pai estável, responsável, atento às pequenas e grandes coisas, ao sagrado e ao profano, muito humano e exigente. Na Regra encontramos um manancial de ensinamentos práticos e espirituais que influenciaram a cultura e a política, até hoje. É muito simbólico que a nossa Assembleia da República seja sempre nomeada, tão só, por “São Bento” ***. Subtilezas da História!
Parece que o patrono da Europa não esteve sozinho no seu tempo. Noutro extremo do planeta passavam-se realidades muito semelhantes.****
Regresso ao presente
Os mosteiros são hoje – infelizmente – lugares quase residuais. Mas a sua ideia de fundo não é nada pretérita. Também hoje precisamos de pontos fixos no meio deste mundo tão “líquido” e instável. Também hoje procuramos lugares físicos de referência, ‘desanónimos’, onde as pessoas se conheçam de facto. “Dêem-me um ponto fixo e levantarei o mundo”, dizia Arquimedes. O movimento de Igreja em que participo valoriza muito a vinculação local. Por esse mundo fora, “planta” pequenos santuários marianos – já são mais de 200 -, “mini-mosteiros” urbanos, de dimensão familiar. O santuário de Lisboa completa meio século no próximo dia 15 de setembro: um belo lugar sagrado, de temperatura humana, onde procuro integrar fé e vida.
Também hoje precisamos de pessoas, famílias e comunidades com vidas equilibradas e radicalmente ancoradas em Deus. É de São Bento a expressão lapidar: “o Deus tranquilo tranquiliza tudo”. Também hoje vivemos uma nova etapa de globalização, com muitas línguas e nacionalidades no mesmo lugar. Também hoje experimentamos a decadência moral, famílias desfeitas e o cansaço social das jovens democracias. Também hoje ouvimos muito alguém pedir “estabilidade política”. Também hoje se requerem lideranças estáveis, à imagem do “primeiro motor” aristotélico, que gera movimento sem se perder ou desintegrar nele. Também hoje é preciso ordenar o ativismo descontrolado que decompõe a nossa unidade interior. Também hoje há modelos eclesiais em queda, enquanto emergem outros, mais próprios para este tempo. Também hoje precisamos de figuras paternas mais fervorosas e equilibradas, com vida interior e capacidade de trabalho, que vivam e promovam ordem e paz.
Revalorizar o pai
Passando uma manhã de sábado a ver desenhos animados e séries juvenis com os filhos pequenos é fácil constatar o quanto a figura paterna é ali ridicularizada. Há sinais disso em muitos ambientes da nossa realidade “ocidental”. Noutras latitudes ***** não é nada assim; que estranha necessidade de ‘abater’ o pai na Europa! Sabemos que houve vários ideólogos que contribuíram para isso. Sou capaz de entender ser esta uma fatura a pagar por tanta tirania masculina no passado. Mas talvez estejamos a atingir o extremo oposto do pêndulo desta ‘compensação histórica’. Arrisco um juízo generalizado: a figura paterna, salvo honrosas exceções, parece ter perdido tanta força que é hoje quase uma caricatura de si mesma. É ver tantos jovens pais de look adolescente e imberbe. É ver tantos rapazes adultos incapazes de assumir compromissos para a vida. É ver tanto homem de idade avançada que teima em permanecer imaturo nos essenciais da vida. Talvez esteja a cair num “judgemental” exagerado, reconheço, mas é preciso sinalizar isto!
Não defendo um anacrónico pai tirano, de porte altivo e distante. Advogo uma revalorização nova, criativa e pensada – até com suporte científico – da figura do pai. Mas uma revalorização efetiva!
Cada pai é um pai, com características pessoais e únicas – e ainda bem! – mas há elementos de cada cultura e época que influenciam em muito a forma de viver, também a paternidade. Não embarco num retorno nominalista que relativiza tudo. Ninguém, no seu perfeito juízo, quer pais fracos, efeminados ou imaturos. Há que revalorizar de novo a figura paterna. Para bem de todos! Não pretendo o regresso do marialvismo, nem de qualquer espécie de machismo vazio e bacoco. Não defendo um anacrónico pai tirano, de porte altivo e distante. Advogo uma revalorização nova, criativa e pensada – até com suporte científico – da figura do pai. Mas uma revalorização efetiva! As últimas décadas trouxeram tantas transformações e dá a impressão que muitos pais não sabem bem qual é o seu papel no mundo de hoje, na família e na sociedade. Isso só pode dar mau resultado! Não poderá ser este um dos motivos para tantas atuais separações e divórcios? Não será esta uma das razões do recente ‘surto cultural’ LGBT e de género? Não é este um dos fundamentos de tantos problemas de saúde mental? Na sociedade ocidental, a figura paterna é hoje demasiado substituída por ‘profissionais da autoridade’: na saúde, o médico; na educação, o professor; na segurança, o polícia; na religião, o padre; na praia, o nadador salvador; no desporto, o treinador… delega-se demasiado a autoridade paternal. Claro que algumas situações e áreas da vida têm mesmo de ser delegadas a especialistas capacitados, mas não tudo, nem demasiado. Esvazia-se demais o papel do pai (e da mãe). Já vai longe o “totem sagrado” paterno intocável doutros tempos. Os pais de hoje têm que (re)descobrir muita da sua identidade e valor próprio. O seu lugar simbólico na vida familiar permanece altíssimo na sua essência. O desafio hoje é encontrar formas de atuar ao nível dessa elevada altura ontológica. No caldo cultural individualista em que vivemos é muito difícil conseguir isto sozinho. Muitos pais parecem desistir a meio. Claro que não podem ser os pais a (re)valorizarem-se sozinhos; não resulta. No tecido frágil das relações familiares, a mãe é quem mais pode valorizar o pai (e vice versa). Nossa Senhora é muito importante neste tempo, também aqui. Uma mãe tem nas mãos o incrível poder de elevar ou diminuir o pai diante dos filhos. Nem sempre as mães usam bem esse poder. Muitas vezes não têm grandes motivos para isso! Noutras tantas até teriam mas não conseguem. Nem sabem o bem que fariam aos filhos se valorizassem mais o seu pai! Talvez São Bento também possa ajudar: ele que deu ao abade o papel de pai.
Deus Pai
No capítulo 2 da Regra de São Bento encontramos a exigência: “saiba o Abade que é atribuído à culpa do pastor tudo aquilo que o Pai (Deus) puder encontrar de menos no progresso das ovelhas”. A responsabilidade pelo crescimento dos filhos e daqueles que tem a cargo é o grande desafio para um pai. Como? Continua a Regra: “temperando as ocasiões umas com as outras, os carinhos com os rigores, mostre a severidade de um mestre e o pio afeto de um pai”. Equilíbrio paterno confirmado no capítulo 64 da mesma Regra: “Ao Abade deve convir-lhe mais servir que presidir, e na própria correção proceda prudentemente e não com demasia, para que, enquanto quer raspar demais a ferrugem, não se quebre o vaso” (que bela imagem!). E continua, no mesmo capítulo: “na discrição, mãe das virtudes, equilibre tudo de tal modo, que haja o que os fortes desejam e que os fracos não fujam”. Como não ver aqui a imagem do Bom Pastor! É aliás no Evangelho de São João – para mim o cume da revelação divina – que Jesus mais se refere a Deus como Pai (118 vezes). A longa maturação teológica do discípulo amado fá-lo insistir em Jesus a chamar a Deus Pai. Sabemos que passados quinze séculos, tudo isso começou a ser desconstruído. No século XVIII, cortaram a cabeça ao rei, o ‘pai’ absolutista. E no século XIX, os ideólogos europeus que anunciaram a morte de Deus, acabaram por ‘matar’ também muito a figura paterna. Se Deus está morto e Deus é Pai, o pai humano também tem de ‘morrer’. O protestantismo, a revolução francesa, o marxismo e o freudianismo têm aqui a sua quota. Este caminho histórico foi, em muitos aspetos ‘purificador’: combateram-se abusos, cresceu a consciência, aumentou-se a liberdade. Mas quantas vezes o bebé não foi arrastado com a água suja do banho… a orfandade foi o alto preço da ‘suprema’ liberdade!
Viremos essas páginas da História: hoje, queremos pais que vivam inteiro o seu enorme lugar simbólico na vida da família: quantos problemas pessoais e familiares se evitariam! Hoje queremos figuras paternas equilibradas que ajudem a transformar as sociedades e a Igreja: quantos benefícios sociais e eclesiais daqui adviriam! Hoje queremos pais que aprendam com erros passados, próprios e alheios, não desistam nas (muitas) quedas e se esforcem por ser cada dia melhores: quanta ordem e alegria daí viriam! Em suma, queremos pais que se deixem moldar à imagem de Deus Pai.
São Bento, rogai por nós!
Notas
* Expressão atribuído a S. Ambrósio de Milão (340-397 d.c.), advogado, bispo, pai espiritual de S. Agostinho. Um dos quatro principais Padres (pais) da Igreja (com S. Gregório Magno, S. Jerónimo e o próprio S. Agostinho)
**A Regra de São Bento pode ser encontrada por exemplo aqui:
https://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/0480-0547,_Benedictus_Nursinus,_Regola,_PT.pdf
*** A atual Assembleia da República foi em tempos o “Mosteiro de São Bento da Saúde”, construído nos finais do séc. XVI. Os monges beneditinos, sempre trajados de negro, iam abastecer-se de água ali perto, naquele que ficou conhecido como o “poço dos negros”.
**** Quando vivi em Macau frequentei umas interessantíssimas aulas de história comparada das religiões onde fiquei a saber que, no mesmo século, em que São Bento fundava mosteiros na Europa, também na China eram construídos inúmeros mosteiros, entre os quais o de Shaolin. Ali onde Confúcio havia trazido uma revalorização da estabilidade familiar e afirmara que todo o chefe deveria ser como um pai para o seu povo.
***** Trabalhei algum tempo em Moçambique, e depois em Angola, e ali experiencia-se um respeito muito grande pela figura paterna. Essa valorização convive, infelizmente, com um acentuado machismo, sobretudo nas classes sociais mais desfavorecidas, que despreza bastante a mulher, e é completamente inaceitável.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.