João Baptista é descrito no Evangelho de São Lucas como aquele que iluminará “os que jazem nas trevas e na sombra da morte” e dirigirá “os nossos passos no caminho da paz” (1,79). Como profeta, João prepara a vinda de Jesus Cristo e da salvação. Usando outras palavras, ser profeta é ser já uma presença viva do que é anunciado, do que virá. O nosso tempo precisa urgentemente de profetas da paz como João Baptista.
A Bíblia transmite-nos que a paz envolve a edificação mútua (Rm 14,19) de comunidades e indivíduos. “Não há paz sem justiça”, lembra-nos o dominicano Gustavo Gutiérrez, talvez pensando no livro profético de Isaías (32,17), onde encontramos muitas raízes do evangelho. Mas a imaginação profética cristã também afirma o nexo entre a justiça e a paz da maneira inversa: a “colheita de justiça é semeada pelos obreiros da paz” (Tg 3, 18). Ou seja, não há justiça sem paz. A paz autêntica não existe por si própria. É uma construção árdua que não pode ser isolada.
Daí que os verdadeiros profetas combatam a paz podre dos falsos profetas. Em relação a esta paz que chama união à divisão e incute a apatia, Jesus é sempre sinal de contradição. Ele não promove a discórdia, mas segui-lo conduz muitas vezes ao embate entre posições opostas, porque contradiz o estado de coisas atual e aponta para a sua transformação. São Justino Mártir no Diálogo com Trifão, por exemplo, fala na transfiguração dos meios da guerra em meios da paz, das “espadas em arados”, das “lanças em instrumentos de cultivo”. A preservação da dignidade da pessoa humana, desde logo do seu direito à vida, e do meio que ela habita, implica a mudança das estruturas e relações que sabotam e atacam essa dignidade.
O padre jesuíta Daniel Berrigan (1921-2016) foi incansável no cumprimento dessa missão profética, o que lhe valeu olhares de incómodo e antagonismo. Foi preso num conhecido protesto em 1967, com mais oito ativistas católicos, durante a mobilização nacional contra a guerra no Vietname. Esteve dois anos encarcerado, por ter queimado 378 ficheiros de alistamento militar com napalm caseiro, o agente químico despejado sobre o povo vietnamita em milhões de litros. Depois disso, foi preso centenas de vezes em manifestações públicas e pacíficas de oposição ao que ele chamava de “imperialismo militar americano”. Inspirou a Irmandade Católica da Paz (Catholic Peace Fellowship), ao lado do monge trapista Thomas Merton, entre outros.
O movimento social no qual Berrigan participou continua muito ativo. É um movimento contra a violência da guerra e os interesses que a alimentam, mas sobretudo pela paz. Parte do princípio de que a humanidade existe como potência ainda não realizada — pode ser o que ainda não é. Se contemplarmos este horizonte, a guerra é um falhanço humano. A humanidade não se vê nem se respeita como tal nos conflitos armados, porque não resiste à tentação da aniquilação do outro. Desta forma, desiste da fraternidade ao extinguir a “igualdade soberana” entre membros de que fala a Carta das Nações Unidas. Por esta razão, uma das prioridades destas organizações é a luta pelo desarmamento, em particular a proibição do uso e posse de armas nucleares.
A paz autêntica não existe por si própria. É uma construção árdua que não pode ser isolada.
O Papa Francisco tem sido um empenhado impulsionador da paz. Como disse em Hiroshima, cidade bombardeada com uma bomba atómica na Segunda Guerra Mundial, durante a visita ao Japão em 2019: “A verdadeira paz só pode ser uma paz desarmada.”
No contexto internacional, este objetivo necessita do empenho convergente das nações. Quem não quer a guerra, deve abdicar da posse de armas que têm a capacidade de destruir toda a humanidade. Até agora, o Tratado sobre a Proibição das Armas Nucleares, mais abrangente do que o Tratado de Não-Proliferação de 1968, foi assinado apenas por 80 estados e ratificado por 33. Portugal ainda não o assinou, nem nenhum país membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Nas suas mensagens para o Dia Mundial da Paz, o Papa tem focado tópicos fundamentais em torno da paz: a fraternidade como fundamento e caminho, o combate à escravatura, a necessidade de vencer a indiferença, a não-violência como política, os homens e as mulheres em busca de refúgio, e a política como serviço à coletividade humana. Este dia é comemorado a 1 de janeiro. Celebrá-lo é uma boa forma de começar um novo ano: com o empenho pela paz. Este ano, o Papa falou da paz como caminho de esperança e sobre a importância do diálogo, da reconciliação, e da conversão ecológica. Ouçamo-lo:
A Bíblia, particularmente através da palavra dos profetas, chama as consciências e os povos à aliança de Deus com a humanidade. Trata-se de abandonar o desejo de dominar os outros e aprender a olhar-se mutuamente como pessoas, como filhos de Deus, como irmãos. O outro nunca há de ser circunscrito àquilo que pôde ter dito ou feito, mas deve ser considerado pela promessa que traz em si mesmo. Somente escolhendo a senda do respeito é que será possível romper a espiral da vingança e empreender o caminho da esperança.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.