Vou dizer uma coisa que talvez possa chocar alguns leitores: não acho grande piada à igreja do Gesù, em Roma. Eu sei, para quem já lá foi, isto soa a presunção, mas já me explico. Não nego a beleza desta igreja, nem o seu valor artístico, nem a importância que tem na história da arquitectura e reconheço que é verdadeiramente impressionante. Imagino muitas vezes como seria para uma pessoa do séc. XVII e XVIII entrar num lugar como aquele, o que é que provocaria, de que forma este espaço lhe falaria, o que é que lhe diria sobre Deus e a Igreja. A sensação deveria ser de enorme pequenez e de enorme assombro.
Ora, o que senti nas muitas vezes que entrei na igreja do Gesù é que aquele edifício já não exprime a minha fé e a forma como vivo a Igreja. A minha reacção ao barroco é de estranheza: parece que a minha vida não funciona assim, a minha fé não é vivida em talha dourada, nem em simetria, nem numa (pelo menos) aparente perfeição.
A arquitectura e a arte reflectem sempre modos de olhar, de viver, de experimentar, de pensar, de agir, de comunicar, de expressar… próprios do tempo que se habita. De alguma forma, estão a responder a perguntas e inquietações próprias do seu tempo, acompanham o modo como se vive em determinada altura, não se contentam com a segurança que as respostas de ontem deram, mas têm os olhos voltados para a frente. Querer voltar os olhos para trás é recusar a insegurança dos caminhos por trilhar, os únicos que nos podem levar ao lugar onde somos esperados.
Desconfio de tudo o que na Igreja é “neo”: neo-barroco, neo-gótico, neo-conservadorismo… Soa sempre a duas coisas: soa a desejo de voltar a um passado que, com o passar dos anos perdeu o seu lado concreto e ficou apenas a sensação de segurança que transmitiu, por ter respostas prontas para tudo; e soa a falta de fé no princípio absolutamente basilar da fé cristã que é a Encarnação. A vida de Jesus vem entranhar-se na nossa vida, não vem despir-nos da nossa cultura e do que é nosso. Seria muito mais fácil e muito mais práctico ter um único modo de viver, de rezar, de falar, de pensar, de celebrar, mas isso não poderia exprimir a fé de cada pessoa deste mundo, chamada à vida em Jesus tanto como eu. “Para Deus há tantos caminhos quanto pessoas“. (J. Ratzinger, Sal da Terra, Introdução)
vida de Jesus vem entranhar-se na nossa vida, não vem despir-nos da nossa cultura e do que é nosso. Seria muito mais fácil e muito mais práctico ter um único modo de viver, de rezar, de falar, de pensar, de celebrar, mas isso não poderia exprimir a fé de cada pessoa deste mundo, chamada à vida em Jesus tanto como eu. “Para Deus há tantos caminhos quanto pessoas”.
Jesus diz-Se em todas as línguas e em todas as linguagens e isto está longe de ser uma ameaça. Jesus continua a dizer-Se de maneira novas na medida em que a forma de viver, de olhar, de pensar, de falar, de cantar, de construir, também ganham novas formas. Fechar a celebração da fé numa língua desconhecida e num modo único de cantar é tirar-lhe a possibilidade de ser uma expressão viva da fé das pessoas. Sim, estou a falar, por exemplo, de se cantar gregoriano, numa basílica neo-gótica, em Maputo. Isto é hipotético, até porque fui pesquisar e em Maputo não é nada assim, como se pode ver aqui. O meu ponto é que a Igreja seria terrivelmente pobre se não se pudesse fazer isto ou isto.
De um modo muito geral e talvez simplista, há duas formas de viver a fé: a olhar para trás ou a olhar para a frente. A forma de viver a olhar para trás privilegia a segurança e as formas que funcionaram. Tudo o que de bom tinha para acontecer já aconteceu e agora tentamos não estragar muito isso, numa lógica de conservação do que é (ou foi) reconhecidamente bom, tanto que desconfia que alguma coisa melhor possa surgir no futuro. Existe alguma razão neste modo de ver as coisas: Jesus já morreu por nós, num ponto concreto da história que se situa no passado. Mas esta não deixa de ser uma visão estreita e curta, sobretudo, porque normalmente se cristaliza uma determinada época histórica, também ela fruto de um passado e de uma história.
A forma de viver a olhar para a frente não o faz porque o que passou é mau, mas porque acredita que a Criação, a Encarnação e a Salvação continuam o seu caminho de plenitude e esta situa-se no futuro e não simplesmente no passado. Portanto, continuamos um caminho de descoberta muito real, onde as coisas são realmente novas, onde descobrimos formas novas de viver a fé, onde a novidade de Cristo é quotidiana, onde o Espírito continua vivo e actuante na Igreja, não para repetir formas do passado, mas para redescobrir o modo de dizer Pai. Onde também a arquitectura descobre formas novas de pensar o espaço litúrgico, para podermos celebrar melhor; onde a música pode ser redescoberta e ganhar sonoridades novas que falem às pessoas do seu tempo, como aliás toda a música litúrgica começou por fazer.
O Papa Francisco, na sua exortação apostólica Evangelii Gaudium 49, a propósito da «Igreja em saída», é muito claro em relação ao fechamento da Igreja em seguranças: “prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa protecção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6, 37).”
A tentação da segurança é muito grande. A segurança é extremamente confortável, extremamente pacífica, pelo menos, aparentemente. Não há perguntas que não tenham resposta; não há tensões, a não ser aquela causada pela ameaça de um mundo hostil; dá um caminho inequívoco, sem margem para dúvidas ou procuras; dá garantias de um resultado bom. E, no entanto, estabelece fronteiras a Deus, demarca-Lhe um território para lá do qual Ele não pode passar.
“Uma profunda fidelidade ao cristianismo significa permanecer aberto ao seu princípio que é a tradição como ao seu futuro; isto é, ser fiel àquilo que o Cristianismo pode ou poderá vir a ser a fim de alcançar a verdade que é desde sempre: católica (abraçando o todo). A fidelidade deverá abraçar estes dois aspetos“. (Yves Congar, Verdadeiras e falsas reformas na Igreja).
Nota: o autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.